A saúde é um direito fundamental, e a relação entre consumidores e planos de saúde é frequentemente marcada por conflitos, especialmente quando se trata da cobertura de medicamentos e tratamentos. A aprovação da Lei 14.454/2022, que adicionou os §§ 12 e 13 à Lei 9.656/98, trouxe novos parâmetros legais para esse debate, impactando diretamente a atuação dos tribunais brasileiros.
No Estado de São Paulo, o Tribunal de Justiça (TJSP) tem desempenhado papel crucial ao aplicar essas novas regras, moldando decisões que afetam milhares de beneficiários. Este artigo analisa como o TJSP interpreta a legislação e equilibra os interesses dos consumidores e das operadoras de saúde.
A Lei 14.454/2022 e suas inovações
A Lei 14.454/2022 trouxe mudanças significativas para o setor de saúde suplementar no Brasil. Ao incluir os §§ 12 e 13 na Lei 9.656/98, o legislador buscou responder a um problema amplamente discutido: a limitação imposta pelo rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). A nova norma estabeleceu critérios claros para obrigar os planos a cobrirem tratamentos e medicamentos fora dessa lista, ampliando a proteção aos consumidores.
O que dizem os §§ 12 e 13 da Lei 9.656/98?
Para entender o impacto da Lei 14.454/2022, é essencial analisar o texto desses novos dispositivos:
- § 12: Determina que o rol da ANS é de natureza taxativa, mas admite exceções, como quando:
- Há recomendação de um profissional de saúde habilitado.
- O tratamento ou medicamento é respaldado por evidências científicas ou diretrizes médicas.
- Não há alternativas terapêuticas disponíveis no rol para aquela condição.
- § 13: Estabelece que, para justificar a necessidade de cobertura fora do rol, é preciso apresentar ao menos um dos seguintes critérios:
- Estudos comprovando a eficácia do tratamento.
- Registro do medicamento na Anvisa, para o uso indicado.
- Recomendações internacionais reconhecidas.
Impactos da Lei no equilíbrio entre consumidores e planos
A inclusão desses dispositivos traz duas grandes implicações:
- Para os consumidores:
- Maior clareza e objetividade ao pleitear a cobertura de tratamentos modernos ou personalizados.
- Fortalecimento da segurança jurídica em casos de judicialização, uma vez que a lei delineia os requisitos necessários.
- Para os planos de saúde:
- Desafios relacionados ao aumento de custos, já que tratamentos inovadores costumam ser mais caros.
- Necessidade de rever políticas internas e estratégias jurídicas para atender às novas demandas.
Aspecto | Antes da Lei 14.454/2022 | Após a Lei 14.454/2022 |
Natureza do rol da ANS | Taxativo com exceções indefinidas | Taxativo com exceções regulamentadas |
Critérios para exceções | Interpretados caso a caso | Baseados em evidências científicas e critérios específicos |
Proteção ao consumidor | Dependente da interpretação do juiz | Reforçada por normas mais objetivas |
A Lei 14.454/2022 representa um marco ao detalhar situações em que a cobertura fora do rol da ANS é obrigatória. Essa regulamentação reduz incertezas, mas também traz novos desafios para o setor de saúde suplementar, com reflexos diretos nos tribunais.
Rol da ANS: Taxativo ou exemplificativo?
A natureza do rol de procedimentos da ANS tem sido foco de debates jurídicos e legislativos por anos. A Lei 14.454/2022 reafirma o caráter taxativo do rol, mas cria um regime excepcional mais claro para casos em que tratamentos fora da lista sejam indispensáveis. Essa definição, embora traga segurança jurídica, também exige uma análise cuidadosa por parte dos tribunais para evitar que o formalismo da norma prejudique pacientes.
A importância da definição do rol
Na prática, o entendimento de que o rol é taxativo determina o limite das obrigações das operadoras de planos de saúde. No entanto, o legislador, ao estabelecer exceções, buscou preservar o equilíbrio entre a previsibilidade para as operadoras e a proteção dos direitos fundamentais à saúde dos beneficiários. Com isso, os tribunais precisam lidar com dois desafios principais:
- Reconhecer situações que se encaixem nas exceções previstas pela lei.
- Garantir que os laudos médicos e evidências científicas sejam avaliados com rigor, mas sem excesso de formalismo.
O posicionamento do TJSP no contexto atual
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) tem se destacado pela aplicação prática dessas regras, buscando um equilíbrio entre proteger os pacientes e respeitar os limites das operadoras. Entre as práticas mais comuns no tribunal, destacam-se:
- Análise criteriosa de laudos médicos: Os magistrados têm dado peso significativo à opinião dos profissionais de saúde que acompanham o paciente.
- Interpretação objetiva das exceções: Decisões vêm enfatizando que as exceções ao rol taxativo não são uma regra geral, mas um mecanismo para atender casos específicos e bem fundamentados.
O posicionamento do TJSP sobre a Lei 14.454/2022
A atuação do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) na aplicação da Lei 14.454/2022 tem sido fundamental para a consolidação de direitos dos consumidores em face dos planos de saúde. As decisões recentes demonstram um esforço do tribunal em interpretar a norma de maneira equilibrada, garantindo acesso a tratamentos necessários sem desconsiderar os limites legais impostos às operadoras. Este capítulo explora como o TJSP tem fundamentado suas decisões, com destaque para casos concretos e os critérios utilizados pelos magistrados.
Linhas gerais do entendimento do TJSP
O TJSP, em consonância com os §§ 12 e 13 da Lei 9.656/98, tem reafirmado que o rol de procedimentos da ANS é não é taxativo. A corte enfatiza que:
- Laudos médicos bem fundamentados são peças-chave na análise de casos envolvendo medicamentos ou tratamentos fora do rol da ANS.
- Diretrizes científicas e pareceres técnicos, como os emitidos pelo Nat-Jus, têm sido frequentemente utilizados para justificar a obrigatoriedade da cobertura.
- A boa-fé contratual e a função social dos contratos são princípios norteadores das decisões, especialmente quando há risco de agravo à saúde ou à vida do paciente.
Decisões recentes do TJSP
Para ilustrar como o tribunal tem aplicado a Lei 14.454/2022, destacamos ementas recentes que abordam questões práticas envolvendo medicamentos e tratamentos fora do rol da ANS.
- Negativa de cobertura de medicamento para osteoporose
No julgamento da Apelação Cível 1031071-89.2021.8.26.0576, o TJSP manteve a sentença que obrigou o plano de saúde a custear o medicamento Ácido Zoledrônico, usado no tratamento da osteoporose, e condenou a operadora ao pagamento de danos morais.
🔹 Fundamentos da decisão:
- O medicamento estava respaldado por laudo médico e parecer do Nat-Jus/SP, que comprovaram sua eficácia.
- A negativa foi considerada abusiva, contrariando o § 12 da Lei 9.656/98.
- Foi reconhecida a vulnerabilidade emocional da paciente diante da recusa, justificando a indenização por danos morais.
- Tratamento para câncer de mama com medicamento registrado na Anvisa
No caso da Apelação Cível 1012651-10.2024.8.26.0001, o plano de saúde foi condenado a cobrir um medicamento para câncer de mama HER2 metastático.
🔹 Pontos de destaque:
- A operadora alegou que o tratamento era experimental, mas a eficácia do medicamento foi comprovada, e ele possuía registro na Anvisa para a condição específica.
- O TJSP concluiu que a negativa de cobertura era infundada e agravou o sofrimento da paciente, impondo indenização por danos morais.
- Musicoterapia e medicamento importado para autismo
Na Apelação Cível 1003784-44.2023.8.26.0007, o TJSP decidiu sobre a cobertura de musicoterapia e medicamentos importados para uma criança diagnosticada com autismo.
🔹 Aspectos relevantes:
- A musicoterapia foi considerada uma prática reconhecida cientificamente, com base na integração ao SUS e no respaldo da Lei 14.454/2022.
- Em relação ao medicamento importado à base de Cannabis, o tribunal condicionou a cobertura à obtenção de autorização excepcional da Anvisa, reconhecendo a necessidade de observância de normas administrativas.
- Doença de Huntington e medicamento de alto custo
No julgamento da Apelação Cível 1012172-66.2024.8.26.0114, reafirmou-se que a operadora de planos de saúde é obrigada a custear medicamentos de alto custo como o medicamento Austedo (Deutetrabenazina), para tratar a doença de Huntington, mesmo não constando no rol da ANS.
🔹 Decisão fundamentada em:
- Laudo médico que justificava o uso do medicamento como essencial ao tratamento do quadro clínico da autora.
- Nota técnica do Nat-Jus e registro do medicamento na Anvisa, atendendo aos critérios dos §§ 12 e 13 da Lei 9.656/98.
- Aplicação do princípio da boa-fé e da função social do contrato, ressaltando o papel dos planos de saúde na promoção da saúde e bem-estar de seus beneficiários.
Critérios adotados pelo TJSP
O TJSP tem demonstrado um padrão analítico em suas decisões, considerando os seguintes critérios ao julgar casos envolvendo a Lei 14.454/2022:
- Evidências científicas: A apresentação de estudos e laudos técnicos é essencial para comprovar a eficácia e a necessidade do tratamento.
- Laudos médicos personalizados: O tribunal valoriza a opinião do profissional de saúde que acompanha diretamente o paciente, especialmente em casos graves.
- Registros regulatórios: Medicamentos registrados na Anvisa ou com autorização excepcional têm mais chances de cobertura obrigatória.
- Princípios contratuais: A boa-fé e a função social do contrato são frequentemente invocadas para reforçar o dever de cobertura.
A consolidação de um entendimento protetivo
Ao aplicar a Lei 14.454/2022, o TJSP tem contribuído para um sistema mais justo e equilibrado. As decisões refletem a preocupação do tribunal em evitar arbitrariedades por parte das operadoras, ao mesmo tempo que respeitam os limites previstos na legislação. Essa postura busca proteger os direitos dos consumidores sem comprometer a sustentabilidade do setor de saúde suplementar.
Impacto nas relações entre consumidores e planos de saúde
A aplicação da Lei 14.454/2022 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) tem provocado mudanças significativas nas dinâmicas entre consumidores e operadoras de planos de saúde. Enquanto consumidores conquistaram maior segurança jurídica para pleitear tratamentos e medicamentos fora do rol da ANS, as operadoras enfrentam desafios relacionados à sustentabilidade financeira e ao cumprimento das novas regras. Essa tensão evidencia que, embora a legislação tenha avançado, existem questões práticas e estruturais que ainda precisam ser ajustadas.
Benefícios para os consumidores
A Lei 14.454/2022, somada ao posicionamento protetivo do TJSP, oferece aos consumidores uma série de vantagens, incluindo maior clareza e objetividade em seus direitos. Isso pode ser observado em casos como o da cobertura para o medicamento Austedo, destinado a tratar a doença de Huntington, no qual a corte paulista reconheceu que o laudo médico e as evidências científicas justificavam a cobertura, independentemente da ausência do medicamento no rol da ANS.
Principais benefícios observados:
- Redução da incerteza jurídica: A legislação estabelece critérios objetivos para a obrigatoriedade de cobertura, diminuindo a dependência de interpretações judiciais subjetivas.
- Valorização de laudos médicos: A prioridade dada ao parecer dos médicos responsáveis pelo paciente fortalece a posição do consumidor em disputas com os planos.
- Ampliação do acesso a tratamentos inovadores: Casos envolvendo medicamentos como o Ácido Zoledrônico para osteoporose e o tratamento multidisciplinar para autismo mostram como as decisões têm promovido avanços no direito à saúde.
No entanto, o benefício mais notável está na redução do impacto emocional causado pelas negativas indevidas, frequentemente reconhecidas pelo TJSP como geradoras de dano moral. A indenização de R$ 10 mil reais concedida no caso do tratamento para câncer de mama HER2 é um exemplo claro de como o tribunal protege não apenas a saúde física, mas também o bem-estar psicológico do consumidor.
Análise Crítica: A lei e o dever de aplicação pelo Judiciário
A Lei 14.454/2022 foi um marco importante no Direito à Saúde, especialmente para os consumidores que lutavam contra negativas de cobertura de tratamentos essenciais. Apesar disso, a aplicação dessa lei pelo Judiciário tem revelado um debate persistente sobre o equilíbrio entre os interesses dos consumidores e das operadoras de planos de saúde. Para Marcel Sanches, advogado responsável pelo setor de Direito Privado da Ls Advogados, é essencial que o foco das decisões judiciais permaneça no cumprimento estrito da lei:
“De fato, o legislador deve observar a necessidade de não tornar economicamente insuportável o desenvolvimento das atividades das operadoras de planos de saúde. Porém, uma vez que a norma estabeleceu que o rol da ANS não é taxativo, cabe aos julgadores aplicar a lei, sem desviar o foco para preocupações contratuais que a legislação claramente não priorizou, como o famigerado equilíbrio contratual.”
Essa visão coloca em evidência o principal desafio enfrentado pelos tribunais: aplicar a lei conforme seu texto e objetivo, sem que questões como a sustentabilidade financeira das operadoras se sobreponham aos direitos fundamentais dos consumidores.
Um sistema que privilegia a vida
O equilíbrio financeiro do setor de saúde suplementar é uma questão relevante, mas não pode ser o foco do Judiciário ao aplicar uma norma tão clara e direcionada. O objetivo primordial da Lei 14.454/2022 é assegurar que pacientes tenham acesso a tratamentos eficazes e necessários, com base em critérios objetivos. A tentativa de balancear as relações contratuais, quando a lei não permite brechas para tal análise, enfraquece o sistema jurídico e a confiança do consumidor.
Conclui-se, portanto, que o TJSP tem uma oportunidade histórica de reafirmar os direitos fundamentais, aplicando a norma com rigor e consistência, sem ceder a preocupações que extrapolam seu papel constitucional. A sustentabilidade do sistema pode e deve ser debatida, mas o espaço para isso é o legislativo, não o Judiciário. Como bem destaca Marcel Sanches, a prioridade deve ser a vida e a saúde, acima de qualquer outra análise.