A tragédia sem precedentes que abalou o Estado do Rio Grande do Sul, que registra, até o momento 143 óbitos, mais de 500 mil pessoas desalojadas e mais de 2 milhões de pessoas afetadas – segundo dados da Defesa Civil do Estado – vai exigir da Administração Pública uma capacidade extraordinária de ação para o restabelecimento das condições mínimas de habitabilidade e normalidade dos serviços públicos.
O Decreto Legislativo 36, de 2024, do Congresso Nacional, reconheceu, para fins do disposto no artigo 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), a ocorrência do estado de calamidade pública em parte do território nacional para atendimento às consequências derivadas dos eventos climáticos no Estado de Rio Grande do Sul.
De acordo com Rafael Marinangelo, pós-Doutor pela Faculdade de Direito da USP e especialista na área de Direito da Construção, Contratos de Construção e Processos Licitatórios, a União fica autorizada a não computar as despesas por meio de créditos extraordinários e as renúncias fiscais necessárias ao enfrentamento da situação de calamidade pública, no atingimento dos resultados fiscais. “Em resumo, a União poderá endereçar recursos ao Estado do Rio Grande do Sul sem violar a lei de responsabilidade fiscal”, esclarece.
A dúvida que fica é: como a Administração Pública poderá imprimir urgência às medidas de enfrentamento da situação de calamidade pública estando ela, a princípio, engessada por uma complexa lei de contratações públicas?
A resposta, de acordo com Marinangelo, está no artigo 74 da Nova Lei de Licitações (nº 14.133/2021), que, em situações dessa natureza, dispensa o uso do procedimento licitatório. De acordo com o texto legislativo, a Administração Pública poderá contratar diretamente obras, serviços e bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa.
“A dispensa de licitação ocorre sempre que, a despeito de ser possível promover a competitividade, questões de ordem econômica ou prática não recomendam o uso do custoso e demorado procedimento licitatório. É exatamente o caso de situações de calamidade pública. Assolado por situação extrema que exige pronta resposta do Estado, o território sob situação de calamidade pública está excepcionalmente desobrigado de utilizar o burocrático procedimento licitatório, cujo escopo é garantir, em condições de normalidade, a contratação mais vantajosa à Administração”, explica o especialista.
Em situações como a do Rio Grande do Sul, a tutela da economia estatal em contratações com a iniciativa privada deve ceder espaço à tutela da vida humana e ao restabelecimento da normalidade afetada pelos eventos climáticos. “O regime de urgência imposto pela tragédia gaúcha não constitui, entretanto, salvo conduto para a Administração Pública contratar sem planejamento, nem mesmo para postergar, sem fixar uma data futura, as contratações feitas em caráter de excepcionalidade. Também não justifica contratações em valores exorbitantes, embora seja certo que a adversidade e excepcionalidade da situação possa tornar mais custosa a contratação”, detalha.
Apesar de todas as dificuldades, os gestores deverão realizar as medidas mais urgentes para mitigação das consequências da situação de calamidade, livres das amarras do processo de licitação. “Será preciso, também, elaborar estudo e planejamento detalhados para a reconstrução do Estado do Rio Grande do Sul em condições de normalidade exigidas pela lei 14.133/21”, conclui.