Estados da Amazônia Legal suspendem investimentos em áreas essenciais e distribuem R$ 1,1 bilhão em verbas extras para TJs, MPs e Defensorias Públicas, revela estudo do JUSTA
As dinâmicas de negociação orçamentária entre governos e instituições de Justiça precisam ser trazidas à público e debatidas abertamente pela sociedade, dado que a ganância desenfreada de carreiras jurídicas pode se constituir como uma avenida para a corrupção institucional. Além disso, é fundamental lançarmos luz sobre um mecanismo pouco conhecido, a suspensão de segurança, que dá aos presidentes dos Tribunais de Justiça brasileiros o poder de suspender decisões judiciais que contrariem os mesmos governos.
As dinâmicas de negociação orçamentária entre governos e instituições de Justiça precisam ser trazidas à público e debatidas abertamente pela sociedade, dado que a ganância desenfreada de carreiras jurídicas pode se constituir como uma avenida para a corrupção institucional. Além disso, é fundamental lançarmos luz sobre um mecanismo pouco conhecido, a suspensão de segurança, que dá aos presidentes dos Tribunais de Justiça brasileiros o poder de suspender decisões judiciais que contrariem os mesmos governos. A avaliação é do JUSTA, organização do campo da economia política da justiça que, a partir dos estudos “Justiça e Orçamento na Amazônia Legal em 2022” e “Suspensão de Segurança na Amazônia Legal”, se propõe a debater não só os valores, mas os mecanismos de transferência de recursos para carreiras jurídicas nos estados da Amazônia Legal, a fim de receberem a devida atenção.
De acordo com os dados, obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) e dos portais de transparência, governos de cinco estados da Amazônia Legal destinaram R$ 1,1 bilhão em verbas extras para instituições do sistema de justiça em 2022, sendo R$ 654 milhões apenas para folha de pagamento de Tribunais de Justiça, Ministérios Públicos e Defensorias de estados. Esses recursos foram remanejados sem análise dos Legislativos estaduais, contrariando o que está previsto na Constituição, sendo os tribunais de justiça os maiores beneficiados desses créditos extras. Contando com os valores adicionais, os cinco estados analisados somaram mais de R$ 5,4 bilhões em orçamento apenas para os TJs.
“Enquanto o sistema de justiça recebe verbas extras, além das previstas na Lei Orçamentária, áreas essenciais sofrem cortes. Os recursos públicos são finitos e os dados mostram uma escolha dos gestores estaduais em privilegiar as instituições de justiça ao invés de garantir direitos básicos para a população.”, avalia a diretora-executiva do JUSTA, Luciana Zaffalon. “Se a Constituição diz que a distribuição de recursos deve passar pelo Legislativo, é razoável a naturalização do atual modelo de abertura de créditos adicionais pelos governos? Essa é uma pergunta que ganha ainda mais relevância quando envolve distribuição de recursos para as instituições que têm a atribuição de responsabilizar o Estado por suas ações e omissões” pondera.
Ao mesmo tempo em que distribuem as verbas extras para o sistema de justiça, os Estados da Amazônia Legal têm recorrido com frequência aos presidentes dos Tribunais de Justiça para suspender decisões judiciais de primeira instância que os contrariam, se utilizando da suspensão de segurança. Trata-se de dispositivo legal desconhecido da maioria da população que confere aos presidentes dos tribunais brasileiros o poder para individualmente suspender os efeitos de decisões tomadas contra o poder público.
O JUSTA analisou 245 pedidos de suspensão de segurança julgados pelos TJ’s de estados da Amazônia Legal. Os principais fundamentos utilizados pelos presidentes dos tribunais para atender aos pedidos foram o zelo pela ordem pública (130) e pela economia pública (97). De acordo com o levantamento, quatro setores foram significativamente atingidos pelo uso deste dispositivo: segurança pública, gestão do sistema prisional, pandemia de Covid 19 e a chamada guerra fiscal.
A análise das 245 decisões de suspensão de segurança nos estados da Amazônia Legal mostra que o presidente do Tribunal de Justiça do Maranhão foi responsável por apreciar 133 pedidos, seguido por 77 do Amazonas, 13 do Pará, oito do Mato Grosso, cinco de Roraima, três de Rondônia, três do Amapá e três do Tocantins. No entanto, apesar de alguns TJs terem um número aparentemente reduzido de suspensões de segurança, muitas delas têm seus efeitos expandidos, como no Mato Grosso, em que uma única decisão da presidente do TJ suspendeu os efeitos de 78 decisões judiciais, que tiveram seus efeitos estendidos a outros 35 processos.
“A suspensão de segurança permite uma atuação política dos presidentes dos tribunais brasileiros, dando a eles o poder de suspender decisões judiciais que contrariem os mesmos governos responsáveis por liberar créditos adicionais para essas instituições.” avalia Zaffalon.
O estudo do JUSTA mostra que o peso da folha de pagamento das três instituições de justiça – TJ, MP e DP – no orçamento dos estados da Amazônia Legal analisados foi expressivo. No Maranhão, 15% de toda a folha de pagamento do estado é consumida com salários e encargos dessas carreiras jurídicas; em Rondônia, a fatia destinada para esse fim foi de 13%; em Tocantins, 10%; e no Acre, 8%. O Ministério Público do Pará não forneceu os dados completos para o estudo.
DE OLHO NOS ESTADOS
Maranhão
Entre os estados analisados pelo JUSTA na Amazônia Legal, o Maranhão é onde foram distribuídos mais créditos adicionais para as instituições de Justiça e que também registrou o maior número de pedidos atendidos de suspensão de segurança na esfera estadual, a partir de decisões do presidente do TJ-MA. Ao mesmo tempo em que há um orçamento bilionário para as instituições de Justiça, áreas sensíveis sofreram expressivos cortes de investimentos em 2022.
O orçamento geral do Maranhão em 2022 foi de R$ 22,4 bilhões, dos quais R$ 2,8 bilhões foram destinados na Lei Orçamentária Anual (LOA) ao Tribunal de Justiça, Ministério Público e a Defensoria. No decorrer do ano, o governo autorizou o repasse de créditos adicionais de mais R$ 643 milhões ao TJ, MP e DP, dos quais R$ 216 milhões foram utilizados apenas para folha de pagamento. No total, considerando os valores previstos em lei e os liberados em créditos adicionais, o sistema de justiça maranhense recebeu R$ 1,5 bilhão somente para folhas de pagamento.
Assim como ocorreu em outros estados, o governo do Maranhão obteve autorização da Assembleia Legislativa para transferir até 50% do orçamento estadual sem a necessidade de uma análise e aprovação dos deputados estaduais.
O maior beneficiado pela transferência dos créditos extras no sistema de justiça foi o TJ-MA, que tinha um orçamento previsto de R$ 1,5 bilhão e terminou o ano de 2022 com cerca de R$ 2 bilhões, com R$ 471 milhões em créditos que não estavam previstos na lei orçamentária. Esse valor é superior aos orçamentos somados de 10 funções de inegável importância no orçamento público – Transporte, Assistência Social, Saneamento, Cultura, Gestão Ambiental, Trabalho, Comércio e Serviços, Indústria, Organização Agrária e Habitação.
O impacto dessas transferências no orçamento estadual não pode ser ignorado. O estudo do JUSTA aponta que o Maranhão não distribuiu recursos a áreas essenciais à população que estavam previstos na LOA. Em 2022, o estado cortou 40% do orçamento previsto em LOA para Ciência e Tecnologia, 39% no Saneamento Básico, 38% para indústria, 32% em gestão ambiental e 6% em educação.
Ao mesmo tempo, o presidente do Tribunal de Justiça do estado foi o que mais concedeu decisões de suspensões de segurança no período analisado pelo JUSTA, com 133 suspensões, sendo 70 deles estaduais. Destes, 50 foram atendidos. Entre as decisões favoráveis ao governo, destacam-se a suspensão da instalação de Núcleo de Perícia Forense composto por um Instituto de Identificação, um Centro de Perícias Técnicas para Crianças e Adolescentes, um Instituto Médico Legal e um Instituto de Criminalística. Além disso, a presidência do TJ-MA impediu a designação de delegados e policiais civis para municípios do estado.
Rondônia
Em Rondônia, o governo promoveu um corte de 100% do orçamento previsto na Lei Orçamentária Anual (LOA) para a área de trabalho, enquanto o Tribunal de Justiça, Ministério Público e Defensoria Pública receberam R$ 1,2 bilhão, em 2022, entre a verba prevista na LOA e de valores repassados a partir de créditos adicionais. No estado, o total do orçamento em 2022 foi de R$ 10 bilhões distribuídos em diversas áreas e a Assembleia autorizou o governo a remanejar diretamente até 20% (R$ 2 bilhões) em créditos adicionais sem precisar passar pelo legislativo. Do total dessas verbas extras, R$ 86 milhões foram remanejados para as folhas de pagamento do sistema de justiça do estado, sendo a maior parte, R$ 75 milhões, para o TJ-RO.
Cabe destacar, que o orçamento do TJ-RO, de R$ 809 milhões, é superior aos orçamentos somados de 11 funções de inegável importância no orçamento público – Indústria, Ciência e Tecnologia, Cultura, Habitação, Desporto e Lazer, Saneamento, Gestão Ambiental, Urbanismo, Assistência Social, Comércio e Serviços e Agricultura.
Neste contexto em que o sistema de justiça recebeu esses créditos adicionais, o TJ-RO julgou três decisões de suspensão de segurança que favoreceram o governo estadual, sendo uma delas a manutenção de contrato com empresa que responde a processo administrativo por fornecimento de alimentos de má qualidade ao sistema prisional de Porto Velho, onde ainda foram constatadas situações de insegurança alimentar.
Amazonas
Amazonas não disponibilizou dados solicitados via LAI para o levantamento que analisou orçamento da justiça e liberação de créditos adicionais. No entanto, o estado se destaca entre os que mais contabilizaram decisões de suspensão de segurança, totalizando 77 medidas nesse sentido, com grande impacto na vida da população, como as que se refletiram no fornecimento de oxigênio medicinal e suspenderam a disponibilização de equipe médica e leitos de UTI, de urgência e emergência nos municípios do Amazonas durante a pandemia da Covid-19. No Amazonas, dos 47 pedidos de suspensão estaduais, 70% foram atendidos, sendo que um deles, o que inviabilizou a disponibilização de leitos de UTI, teve seus efeitos estendidos, suspendendo outras 62 decisões judiciais do mesmo tipo.
Pará
No Pará não foi possível fazer análise orçamentária completa das instituições porque o Ministério Público não disponibilizou todos os dados sobre suas despesas. Contemplando somente o levantamento a partir dos dados do Tribunal de Justiça e da Defensoria Pública, R$ 1,8 bilhão foi o orçamento destinado a essas áreas em 2022, com créditos adicionais, sendo R$ 1,6 bi somente referente ao TJ-PA. Esse valor é superior aos orçamentos somados de 11 funções de inegável importância no orçamento público – Agricultura, Cultura, Gestão Ambiental, Desporto e Lazer, Ciência e Tecnologia, Comunicações, Habitação, Trabalho, Indústria, Organização Agrária e Energia.
Do total, R$ 1,2 bilhão foi gasto com a folha de pagamento. Em termos de créditos adicionais, a LOA 2022 autorizou o governo a distribuir até 50% (R$ 15,7 bi) do orçamento sem passar pela aprovação do Legislativo. Desse montante, R$ 230 milhões foram distribuídos para TJ e DP em créditos adicionais.
Ao mesmo tempo em que distribuiu créditos adicionais para o sistema de justiça, o Estado encaminhou ao presidente do TJ local pedido de suspensão de segurança que teve efeito sobre nove decisões de primeira instância, que determinavam a promoção imediata de policiais militares e o pagamento da diferença de todas as remunerações anteriores até a data do reconhecimento da promoção. Outra decisão favorável ao governo, referente à ampliação de cobrança de ICMS, gerou suspensão de 117 decisões, tendo efeitos expandidos para alcançar outros 178 processos. No período analisado, foram 9 pedidos de suspensão de segurança estaduais. Dos pedidos totais, 69% foram suspensos e 31% mantidos.
Acre
O estado foi o único analisado na Amazônia Legal que não registrou nenhuma decisão de suspensão de segurança do Tribunal de Justiça no período de uma gestão completa. E foi, também, o que recebeu o menor volume financeiro em créditos adicionais para o sistema de justiça e, consequentemente, para folha de pagamento das instituições. No entanto, o orçamento do TJ-AC, de R$ 319 milhões, é superior aos orçamentos somados de 10 funções de inegável importância no orçamento público – Saneamento, Ciência e Tecnologia, Gestão Ambiental, Assistência Social, Cultura, Desporto e Lazer, Comunicações, Comércio e Serviços, Organização Agrária e Indústria.
A folha de pagamento das três instituições no Acre somou um orçamento de R$ 383 milhões no período. Em termos de créditos adicionais, a LOA 2022 autorizou o governo a distribuir até 30% (R$ 2,4 bi) do orçamento sem passar pela aprovação do Legislativo. Desse montante, R$ 89 milhões foram distribuídos para o sistema de justiça em crédito adicionais. Ainda assim, apesar do menor volume em relação a outros estados, enquanto houve pagamento de créditos adicionais para a Justiça, houve corte orçamentário em outras áreas, como saneamento, que teve cortes de 49% do valor gasto previsto na LOA, 20% em comunicações, 14% em agricultura e 5% em assistência social.
Tocantins
No Tocantins, o orçamento total do estado em 2022 foi de R$12,8 bilhões. O orçamento das instituições do sistema de justiça com créditos adicionais contabilizou R$ 1,1 bilhão, sendo R$ 724 milhões do TJ-TO. Esse número é superior aos orçamentos somados de 15 funções de inegável importância no orçamento público – Agricultura, Gestão Ambiental, Assistência Social, Comércio e Serviços, Cultura, Saneamento, Indústria, Trabalho, Desporto e Lazer, Comunicação, Habitação, Urbanismo, Organização Agrária, Ciência e Tecnologia e Energia.
Da verba total para as três instituições, R$ 749 milhões foram destinados às folhas de pagamento. Em termos de créditos adicionais, a LOA 2022 autorizou o governo a distribuir até 30% (R$ 3,4 bi) do orçamento sem passar pela aprovação do Legislativo. Desse montante, R$ 134 milhões foram distribuídos para o sistema de justiça em créditos adicionais. Em relação à suspensão de segurança, apesar de o estado registrar apenas três decisões nesse âmbito, uma delas suspendeu mais de 50 decisões, tendo o efeito extensivo.
Outros estados
Para o estudo de “Justiça e Orçamento”, não foi possível realizar o levantamento do Amapá, Mato Grosso e Roraima porque os estados não responderam o pedido de dados completos feito pelo JUSTA via Lei de Acesso à Informação. No Mato Grosso, foram oito pedidos de suspensão de segurança de dezembro de 2020 a 2022, sendo sete deles na esfera estadual – destes, quatro foram suspensos e dois mantidos. Em Roraima, houve cinco pedidos de 2021 a 2023, sendo quatro na esfera estadual, todos mantidos. E no Amapá, de 2021 a 2023, foram três pedidos, sendo dois estaduais, um deles acatado e outro não. Uma das decisões no Amapá teve efeito extensivo e suspendeu 26 decisões. Nestes dois últimos estados, as decisões das presidências dos TJs permitiram que os estados exigissem das empresas os valores relacionados ao Diferencial de Alíquota de ICMS (DIFAL), medida adotada para tentar reduzir os efeitos da guerra fiscal.
Metodologia
Os dados do estudo “Justiça e Orçamento na Amazônia Legal em 2022” são referentes aos estados do Acre, Maranhão, Pará, Rondônia e Tocantins. O estudo não contempla os dados do Amazonas, Roraima, Mato Grosso e Amapá porque os estados não disponibilizaram os dados completos apesar da solicitação do JUSTA via Lei de Acesso à Informação.
O estudo “Suspensão de Segurança na Amazônia Legal” analisou como se comportaram os presidentes de nove Tribunais de Justiça da região, durante a gestão mais recente, incluindo o ano de 2022, frente aos pedidos dos governos dos estados, sendo eles do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. Os dados foram levantados tendo como base listas de processos disponibilizadas pelos Tribunais de Justiça via Lei de Acesso à Informação.