- Tiago Cisneiros
As chuvas e enchentes que afetam o Rio Grande do Sul são manifestações de uma mudança climática global. As reportagens sobre o tema demonstram que fenômenos extremos como esse têm sido – e continuarão a se tornar – cada vez mais frequentes, o que convida à reflexão sobre as suas consequências jurídicas, inclusive nas relações entre particulares. Neste breve artigo, são levantadas algumas provocações a partir dessa perspectiva.
Dados da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) estimam que os impactos financeiros da tragédia gaúcha, até agora, estejam próximos aos R$ 9.000.000,00 (nove bilhões de reais). Nesse cenário, é esperado que as empresas afetadas não sejam capazes de arcar com seus compromissos na forma como inicialmente pactuada. Fornecedores poderão não produzir ou entregar o que prometeram. Dívidas podem não ser pagas no prazo, diante da paralisação das atividades, da queda no faturamento e da necessidade de reverter recursos para questões urgentes. Estoques e imóveis podem ser perdidos.
Muitos, em síntese, são os danos econômicos que podem advir dessas tragédias climáticas, implicando, igualmente, situações a serem dirimidas no domínio do direito. É plausível esperar, por exemplo, por um aumento significativo no número de pedidos de recuperações judiciais (ou extrajudiciais), notadamente diante da relevante participação do Rio Grande do Sul no setor agropecuário e do reconhecimento da possibilidade de utilização daquele instituto por produtores rurais inscritos na Junta Comercial (Tema Repetitivo 1.145, do STJ).
Vale lembrar, ainda, que a Lei 11.101/2005 permite ao produtor rural a apresentação de “plano especial de recuperação judicial”, desde que o valor da causa não exceda R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais). Nesse caso, o procedimento é simplificado e menos custoso, visto que a recuperação pode ser concedida sem que sequer seja necessária a convocação de assembleia-geral de credores para aprovação do plano.
As enchentes também tendem a alavancar a busca por outras medidas de (re)negociação direta com credores, sejam elas judiciais ou extrajudiciais. A atual legislação confere um peso especial a tentativas de autocomposição, inclusive com imposição de obstáculos à execução imediata dos débitos, como se verifica no Código de Processo Civil (arts. 3º, §3º, 165, 334 etc) e na Lei n. 11.101/2005 (arts. 20-A, 20-B e 20-C), entre outros diplomas.
Mesmo diante de medidas de cobrança/execução, os devedores terão à mão a possibilidade de arguir, em sua defesa, as excludentes de responsabilidade clássicas da força maior ou do caso fortuito. O argumento, evidentemente, varia de caso a caso, mas pode ser útil para afastar o reconhecimento da mora e/ou de seus encargos, eliminar a configuração de culpa ou dolo e até mesmo para ensejar revisões contratuais. Esta última possibilidade, aliás, pode não ser adotada de forma reativa. O próprio prejudicado, sempre à luz da situação concreta, pode tomar a iniciativa de pleitear a modificação das condições originais do negócio, a partir do art. 393, do Código Civil.
Em todo e qualquer desses cenários, entretanto, é fundamental que existam provas robustas das alegações. Os fenômenos climáticos extremos até podem ser fatos notórios (art. 374, I, do CPC), mas isso não autoriza, por si só, que sejam presumidos os danos alegados pelas partes – como, não raramente, se pretendeu à época da pandemia de covid-19. É necessário que se demonstre, de forma específica, o prejuízo sofrido, inclusive com o estabelecimento do nexo de causalidade em relação aos argumentos em favor da exclusão de responsabilidade ou da revisão contratual.
Outras possíveis consequências desses fenômenos estão no âmbito negocial. Conquanto secas, enchentes, incêndios de grandes proporções e outras tragédias ainda sejam tratadas como excepcionais, a ciência comprova que suas ocorrências serão cada vez mais frequentes – em grande parte, por responsabilidade humana.
É esperado, portanto, que tais eventos passem a ser contemplados em negociações de forma mais clara, com cláusulas específicas sobre assunções, isenções ou distribuições de responsabilidades. Pela mesma razão, seria razoável um crescimento no mercado securitário, no que tange tanto à diversificação de produtos disponíveis no mercado, quanto ao detalhamento na estipulação das regras de cobertura.
Em suma: embora as consequências humanitárias sejam – e precisem ser – a prioridade durante e após fenômenos climáticos extremos, não se pode fechar os olhos para as mudanças que tais eventos acarretam para a economia e para o direito. Nesse sentido, além de todos os aspectos mencionados neste artigo (dentre outros não explorados), os profissionais de ambas as áreas também devem estar atentos às possibilidades de atuar em prol da prevenção ou da minimização dessas tragédias. As portas para iniciativas ligadas a boas práticas e à responsabilidade social, ambiental e corporativa (ESG) estão cada vez mais abertas.
- Tiago Cisneiros, do Serur Advogados