Em janeiro, diante da aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) do uso da vacina contra a Covid-19 em crianças de 5 a 11 anos, muitos pais ficaram em dúvida quanto à vacinação de seus filhos.
De acordo com o §1º do artigo 14 do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), porém, “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. O artigo 249 do ECA reitera que a falta de vacinação obrigatória — se intencional ou não — significa violação dos deveres pelos pais.
Para o advogado Acacio Miranda da Silva Filho, doutorando em Direito Constitucional pelo IDP/DF, não há dúvidas de que a criança deve, sim, ser vacinada. “Ao tratarmos da obrigatoriedade da vacinação infantil, dois pilares devem ser ressaltados: a saúde pública e a liberdade de escolha dos pais — e, quando ponderados estes bens jurídicos, especialmente durante a crise sanitária atual, é natural pensarmos que a saúde pública, que é inerente a toda a sociedade e à manutenção de seus pilares, deve prevalecer em detrimento aos interesses individuais”, diz, acrescentando que, ademais, “o ECA estabelece o princípio do melhor interesse da criança, razão pela qual, e com base em todos os elementos médico-científicos, a vacina deve ser aplicada”.
O também advogado e professor de Direito Constitucional pela USP Antonio Carlos de Freitas Júnior concorda e é taxativo ao citar o mesmo §1º do artigo 14 do ECA. “De maneira acertada, o Estatuto é abundante em mecanismos de prevenção à ameaça de lesão a direitos da criança. Da inteligência do próprio dispositivo, não há o que se falar quanto à obrigatoriedade de vacinas que sejam obrigatórias. A mera recomendação de vacinação pela autoridade sanitária, o que já houve em relação à vacinEspecialistas comentam as muitas penalidades impostas aos pais que não levarem os seus filhos a vacinarem contra Covid, faz-se obrigatória para as crianças por força normativa do ECA”, pontua.
Portanto, se os pais deixarem de vacinar o filho e esse contrair a doença, eles podem ser responsabilizados penalmente, além da aplicação da multa prevista pelo Estatuto? “A omissão dos pais na vacinação, com fundamento no artigo 98 do ECA, por si só deflagra o sistema de proteção do ECA, que pode acarretar: (i) orientação, apoio e acompanhamento temporários; (ii) inclusão em serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família, da criança e do adolescente; (iii) requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; (iv) acolhimento institucional; e (v) inclusão em programa de acolhimento familiar — todas proteções que protegem a criança”, declara ainda Antônio Carlos.
O especialista lembra que as sanções a pais que se negam a vacinar os filhos são variadas: “há as seguintes possibilidades: (i) encaminhamento a serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família; (ii) encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; (iii) encaminhamento a cursos ou programas de orientação; (iv) perda da guarda; (v) suspensão ou destituição do poder familiar”. Freitas observa que, além disso, pode ser aplicada multa no valor de três a 20 salários de referência. Mas não é só: criminalmente, os pais poderão ser responsabilizados nos termos do artigo 132 do Código Penal — ‘expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente’ — e serem punidos com detenção de três meses a um ano.
E se o pior acontecer — em caso de morte da criança por covid-19 –, os pais podem ser acusados de homicídio culposo?” “Em caso de morte ou de lesão corporal os pais podem, sim, ter de responder pela modalidade culposa de tais crimes”, diz Antonio Carlos Freitas. Ele acrescenta, porém, que “por serem pais, possivelmente haja ao fim do processo um perdão judicial — com não imposição de pena –, pois a perda de um filho por si só é um castigo e, nos casos de verificação do sofrimento à família, tal instituto é aplicado”. O advogado reitera, no entanto, que “todo o processo judicial é conduzido normalmente e pode haver casos de não aplicação do perdão judicial”.
O advogado criminalista pela USP, Matheus Falivene, reconhece que a questão é complexa, mas é taxativo. “Deixar de vacinar pode ser crime de abandono de incapaz, previsto no artigo 133 do Código Penal. A vacinação é obrigatória; os pais não têm o direito de não vacinar os seus filhos — não só por uma questão de risco à criança, mas também por risco à sociedade ”, destaca.
Falivene lembra, porém, que a polêmica que cerca a vacinação de crianças e o movimento antivacina são anteriores à atual pandemia — e que, portanto, já existe o Projeto de Lei 3842, de 2019, que cria o crime “oposição ou contraposição à vacinação de crianças e adolescentes”. “Se aprovado, esse PL definirá um crime que é muito mais específico e direcionado em relação à vacinação de crianças e adolescentes — e que acaba com qualquer discussão a respeito do tema”, evidencia.
Entrevistados
Acacio Miranda da Silva Filho é doutorando em Direito Constitucional pelo IDP/DF. Mestre em Direito Penal Internacional pela Universidade de Granada/Espanha. Pós-graduação lato sensu em Processo Penal na Escola Paulista da Magistratura e em Direito Penal na Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. É especialista em Teoria do Delito na Universidade de Salamanca/Espanha, em Direito Penal Econômico na Universidade de Coimbra/IBCCRIM e em Direito Penal Econômico na Universidade Castilha – La Mancha/Espanha. Tem extensão em Ciências Criminais, ministrada pela Escola Alemã de Ciências Criminais da Universidade de Gottingen, e em Direito Penal pela Universidade Pompeu Fabra.
Antonio Carlos de Freitas Júnior é advogado e professor de Direito Constitucional. Foi assessor parlamentar na Assembleia Legislativa de São Paulo e na Câmara dos Deputados. Foi coordenador de políticas públicas de juventude na Prefeitura de São Paulo, presidente do Conselho Municipal de Juventude de São Paulo e Ouvidor na Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB). Bacharel, mestre e doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Direito e Processo Constitucional pelo Instituto de Direito Público (IDP). Autor de obras jurídicas voltadas para a prática da advocacia e concursos públicos em geral.
Matheus Falivene é Advogado nas áreas de Direito Penal e Direito Penal Econômico. Doutor e mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Especializado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/Portugal. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas. Professor na pós-graduação da PUC-Campinas.