Por Ana Beatriz Valenciano Achilles, José Henrique Longo e Raphael Kignel
Embora a pandemia da COVID-19 seja evento passado, não há dúvidas sobre as marcas que deixou na economia brasileira. O recrudescimento econômico foi tão expressivo que mesmo atualmente o Poder Judiciário tem se deparado com um número crescente de recuperações judiciais e falências. As autoridades estatais – notadamente aquelas que exercem funções arrecadatórias – não têm acompanhado com a necessária sensibilidade a luta do empresário para manter seu negócio funcionando e adimplente. Não há preocupação em diferenciar o empresário em dificuldades do sonegador fraudulento, prevalecendo desde 2019 o entendimento originado no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 163.334/SC de que a fraude se faz desnecessária para a configuração do crime de apropriação indébita tributária (incidente sobre tributos recolhidos por substituição tributária, como no caso do ICMS-ST e IRRF). Em outras palavras, coloca na mesma cesta o empresário que em um momento de falta de liquidez não consegue honrar com o pagamento dos tributos e aquele que de maneira proposital e desmedida age deliberadamente com a intenção de sonegar. No entanto, seja no campo do Direito Tributário ou seja no campo do Direito Penal, a responsabilidade da pessoa física pelo inadimplemento da pessoa jurídica não ocorre de forma automática.
No campo do Direito Tributário, justamente a fim de priorizar a autonomia da personalidade e do patrimônio da pessoa jurídica é que o Código Tributário Nacional preleciona que os sócios, diretores e dirigentes – aqueles com poder de gestão – somente podem ser responsáveis por “obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos”. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, inclusive, há tempo já consolidou o entendimento de que a falta de pagamento do tributo, por si só, não atrai a responsabilidade dos administradores, sócios e gerentes, sendo essencial a prática efetiva de atos com excesso ou infração para que possam responder por dívida tributária da pessoa jurídica (Súmula nº 430/STJ e Tema Repetitivo nº 97).
Deve, portanto, necessariamente estar presente o elemento interno, da vontade de ludibriar mediante ato de excesso de poderes ou infração à lei, contrato ou estatuto, para que seja possível que o tributo transpasse a barreira da pessoa jurídica e atinja as pessoas físicas que a gerenciam. Tal elemento, inclusive, deve ser provado pelo Fisco, garantindo à pessoa física o direito à ampla defesa e ao contraditório quanto à imputação de responsabilidade tributária ainda no âmbito administrativo. Tanto é assim que, se deixar de ter havido contencioso e a pessoa física não constar na Certidão de Dívida Ativa, o ônus da prova na execução fiscal fica a cargo do ente estatal (Temas Repetitivos nᵒˢ 103 e 104).
Por sua vez, no campo do Direito Penal costuma-se falar no instituto da inexigibilidade de conduta diversa, presente quando as circunstâncias do caso concreto colocam o empresário em uma verdadeira encruzilhada: preservar seu negócio, pagando funcionários, fornecedores, contas de luz etc., ou recolher no tempo certo os tributos cobrados pelo Estado. Nesses casos, em que para salvar a sua empresa não resta alternativa a não ser o inadimplemento tributário, o Direito Penal não exige do empresário um ato de heroísmo, isto é, o sacrifício de seu negócio em benefício dos cofres públicos.
Todavia, considerando que a jurisprudência não entende suficientes apenas as declarações de testemunhas e de sócios para reconhecer a inexigibilidade, é de suma importância a apresentação de prova documental. Os Tribunais dão grande valor à comprovação da inviabilidade contábil de recolhimento dos tributos, vale dizer, a demonstração de que o adimplemento das obrigações tributárias inviabilizaria a atividade empresarial. Na prática, fala-se em balanços patrimoniais, livros fiscais e declarações de rendimentos da pessoa jurídica, tudo a indicar que o pagamento dos tributos implicaria grave sacrifício à empresa. Além desses documentos internos, os Tribunais também levam em consideração a prova da existência de execuções fiscais e trabalhistas, penhoras, protestos etc., elementos externos que provam estar a empresa impossibilitada de cumprir com várias de suas obrigações e não apenas aquelas tributárias.
Mas não só os elementos referentes à empresa, internos ou externos, são relevantes para comprovar a inexigibilidade de conduta diversa. A jurisprudência tem visto com bons olhos o envolvimento pessoal dos sócios em prol da sociedade. Assim, a colocação dos sócios como avalistas de empréstimos e a realização de aportes pessoais como tentativa de viabilizar a atividade empresarial são condutas reconhecidamente válidas e que, se devidamente documentadas, podem servir como importante elemento de prova do estado precário da empresa no que diz respeito à sua saúde financeira, afastando o ônus criminal da pessoa física do sócio.
O ordenamento jurídico não pode fechar os olhos à realidade do empresário. Aquele que não cumpriu com as suas obrigações tributárias por estar impossibilitado de fazê-lo não pode receber o mesmo tratamento daquele que sonegou tributos para obter vantagem pessoal em relação aos seus concorrentes. Agir de tal forma seria não apenas contraproducente do ponto de vista das políticas tributária e criminal, mas também um verdadeiro desestímulo à atividade econômica em tempos de crise.