Dia Mundial da Bioética em 2022 no Brasil. O que celebrar?
Desde 2016, por iniciativa da Unesco, celebra-se o dia mundial da Bioética em 19 de outubro. A cada ano, a efeméride é marcada por um tema que pauta os debates e conscientização. Em 2022, o tema é “Responsabilidade Social e Saúde”, inspirado no Artigo 14 da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco
- Henderson Fürst é Presidente da Comissão Especial de Bioética da OAB-SP, Diretor da Sociedade Brasileira de Bioética e Membro da Comissão Intersetorial de Saúde Suplementar do Conselho Nacional de Saúde.
Desde 2016, por iniciativa da Unesco, celebra-se o dia mundial da Bioética em 19 de outubro. A cada ano, a efeméride é marcada por um tema que pauta os debates e conscientização. Em 2022, o tema é “Responsabilidade Social e Saúde”, inspirado no Artigo 14 da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco que diz:
Artigo 14 – Responsabilidade Social e Saúde
- a) A promoção da saúde e do desenvolvimento social para a sua população é objetivo central dos governos, partilhado por todos os setores da sociedade.
- b) Considerando que usufruir o mais alto padrão de saúde atingível é um dos direitos fundamentais de todo ser humano, sem distinção de raça, religião, convicção política, condição econômica ou social, o progresso da ciência e da tecnologia deve ampliar:
(i) o acesso a cuidados de saúde de qualidade e a medicamentos essenciais, incluindo especialmente aqueles para a saúde de mulheres e crianças, uma vez que a saúde é essencial à vida em si e deve ser considerada como um bem social e humano;
(ii) o acesso a nutrição adequada e água de boa qualidade;
(iii) a melhoria das condições de vida e do meio ambiente;
(iv) a eliminação da marginalização e da exclusão de indivíduos por qualquer que seja o motivo; e
(v) a redução da pobreza e do analfabetismo.[1]
Após a trágica experiência que a humanidade vivenciou com a pandemia de Covid-19, a reflexão sobre o Artigo 14 diz respeito à própria essencialidade da Bioética e dos Direitos Fundamentais: a sobrevivência digna da humanidade. Ressurge o questionamento da pandética, ou seja, como valores morais/éticos são aplicados, relativizados ou reforçados em situações de grandes calamidades sanitárias[2].
Mas, quando 43,2% da população brasileira sofre com a insegurança alimentar leve ou moderada e 15,5% sofre com forma mais grave, o que celebrar de responsabilidade social e saúde? Quando há um corte orçamentário de 59% do programa Farmácia Popular para assistir pacientes com doenças crônicas que fazem uso contínuo de diversos medicamentos essenciais à sua qualidade de vida e sobrevivência, como celebrar o direito ao acesso a cuidados de saúde de qualidade e medicamentos essenciais? E quando se estabelece limiares de custo-efetividade nas decisões em saúde, como falar em usufruir o mais alto padrão de saúde atingível como direito fundamental? E quando se estabelece como antiética a conduta médica que procura disponibilizar cuidados paliativos por meio de produtos com canabinoides?
As consequências de tais decisões políticas (que vulnerabilizam ainda mais a população que historicamente subsiste em condições mínimas de existência digna) são conhecidas e, justamente por isso, são intencionais. A esse poder que dita quem vive e morre, Achille Mbembe definiu como as novas formas de políticas centradas no poder sobre a morte, especialmente na forma como Estados conduzem respostas a crises[3]. Em sua análise, Mbembe inicia demonstrando que tal forma de política é uma fuga da democracia, quando governos deixam de respeitar as formas democráticas alegando-se crise e exceção das mais diversas formas.
No Brasil, tal política ocorreu durante o período pandêmico mais grave. Descrevi tais condutas anteriormente como biopopulismo[4], ou seja, a apropriação política de discursos científicos que visam instrumentalizar a ciência como mecanismo populista de, valendo-se da democracia, ir contra ela própria. Assim, se a necropolítica ocorre em um cenário que contraria a democracia, é por meio do biopopulismo que esse cenário é estabelecido.
Por ocasião daquele texto já alertava para consequências alarmantes, como o aumento da vulnerabilidade sanitária de parcela da população, inclusive com aumento de mortes que poderiam ser evitadas, além de deslegitimar a respeitabilidade e a função social do desenvolvimento cientifico, da ciência e cientistas.[5]
Atualmente, a biopolítica ainda se faz presente – basta ler qualquer noticiário para conhecer parte do longo repertório de suas manifestações. O descaso é uma opção política de reforço das estruturas socioeconômicas e técnico-científicas de restrição do acesso à promoção da saúde e do desenvolvimento social.
Este é o sentido do dia da bioética em 2022 no Brasil: lembrar que é preciso resistir à “morte e vida severina”[6] de uma biopolítica em que nem todos são iguais perante a lei, e na qual tampouco a saúde é um direito de todos e dever do Estado; lembrar que, quanto menos humanidade for atribuída a alguém na minha comunidade, também menos humano eu serei.
[1] Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf
[2] SELGELID, M. J. Pandethics. Public Heath Journal. Vol. 123, n. 3. Londres: Elsevier, mar./2009, p. 255-259.
[3] MBEMBE, Achille. Necropolitics. Durham: Duke University Press, 2019.
[4] FÜRST, Henderson. Biopopulismo e a apropriação política de narrativas científicas. In: CASTELO BRANCO, Pedro H. Villas Bôas; GOUVÊA, Carina Barbos; LAMENHA, Bruno (coords.) Populismo, constitucionalismo populista, jurisdição populista e crise da democracia. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020, p. 141 e ss.
[5] Idem, p. 174.
[6] “E se somos Severinos
Iguais em tudo na vida,
Morremos de morte igual,
Mesma morte Severina:
Que é a morte de que se morre
De velhice antes dos trinta,
De emboscada antes dos vinte,
De fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
É que a morte Severina
Ataca em qualquer idade,
E até gente não nascida)”
MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida Severina. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p. 92