Por Paulo André Stein Messetti
Não é de hoje que as decisões de política legislativa e de governo, regulatórias e, sobretudo, de política judicial, são os dosadores das nuances da evolução da vida em sociedade no Brasil, especificamente no que toca aos delineamentos dos tratamentos e coberturas dos sistemas de saúde Brasileiros.
Refiro-me especificamente às coberturas de tratamentos pelo SUS e pela saúde suplementar
Suplementar significa aquilo que complementa, sem substituir. Aquilo que se adiciona. No sentido da saúde e do desenho do mix de sistemas de saúde público e privado no Brasil, o seu componente de sistema de saúde suplementar significa aquela prestação de saúde a mais da prestação de serviços de assistência à saúde do sistema público.
Assim, os beneficiários de planos e de seguros de saúde não teriam a substituição de sua possibilidade de atendimento e de cobertura no SUS pela contratação do sistema de saúde suplementar na modalidade de um plano ou seguro de saúde. Podem seguir usando ora o SUS, ora o seu plano de saúde, à sua escolha.
Não é por acaso que a Lei dos Planos de Saúde, a Lei federal 9656/98 em seu artigo 32 prescreveu o dever de ressarcimento ao SUS, pelos planos de saúde, da utilização do SUS pelos seus beneficiários, naquelas situações de cobertura contratual dos procedimentos.
Ou seja, o indivíduo beneficiário do plano de saúde pode socorrer ao SUS e a cobertura de seu tratamento deve ser feita pelo SUS, mas se a cobertura for obrigatória ao seu plano de saúde, seja na Constituição, por lei, pela regulação ou por contrato, o seu custeio deve ser ressarcido do plano de saúde ao SUS. Mas ao usuário o atendimento deve ser feito à sua escolha para os tratamentos cobertos pelo plano de saúde: no plano de saúde ou no SUS, com as nuances acima descritas.
Por outro lado, para os casos da prestação de saúde não coberta pelo plano de saúde, o SUS deveria ser acionado e cobrir o tratamento. Aqui reside o campo da usurpação do público pelo privado. Se o sistema suplementar é um adicional ao SUS, como pode o SUS ser adicional ao sistema que se coloca como suplementar, e cobrir, no lugar deste, os tratamentos e sinistros mais custosos?
Efetivamente, a saúde suplementar deveria oferecer ao beneficiário uma modalidade e qualidade de prestação de saúde adicional, a mais, daquela oferecida pelo sistema público, por força do desenho constitucional daquela que é a Saúde Suplementar, para fazer sentido a sua contratação, dentro do desenho dos sistemas de saúde Brasileiros.
Na prática, infelizmente, o que ocorre é que o Sistema Público não tem capacidade de infraestrutura e financeira para atender diretamente ou mediante a saúde privada (os prestadores e instituições contratadas pelo SUS) a todos os brasileiros, de modo que a saúde suplementar de fato substitui o atendimento do SUS para aquela parcela de quase 50 milhões de brasileiros que tem a felicidade e a dor de ter a sua filiação a um plano ou seguro de saúde.
E, a passos largos, o sistema de saúde suplementar, desde sempre, e mais agora, quer cada vez mais substituir o SUS, e por consequência inutilizá-lo, pois isso é mais interessante sob o aspecto da busca pelo lucro privado do serviço de mercado da saúde.
A captação do público pelo privado é fenômeno antigo na saúde brasileira. O seu efeito é perverso: ao transferir-se a obrigação de prestação da assistência à saúde de alto custo e de grande sinistralidade, tais como no caso dos medicamentos para uso domiciliar de alto custo, que somente são de uso domiciliar por avanços tecnológicos, mas que se prestam a tratar doenças gravíssimas e com risco iminente à vidade seus beneficiários, a exemplo do recente precedente do Colendo STJ de 14 de julho (REsp nº 1883654 / SP) cada vez mais ao SUS caberá a parte difícil de custear o maior valor dos tratamentos caros e na sua fase de atendimento terciária e quaternária, enquanto que o sistema dito suplementar se torna mais lucrativo, e mais ávido de conquistar mais espaços e beneficiários, para prestar um serviço que não suplementa, no sentido de complementar com algo a mais o sistema público, mas apenas presta um serviço cada vez mais ordinário, simples, e menos custoso, sem ser preventivo – posto que o atendimento primário das operadoras de saúde é pífio ou inexistente, também obrigando o SUS a se tornar cada vez mais deficitário com o atendimento mais especializado, e de alto custo, além do bom atendimento primário que presta à população (melhor que o das operadoras).
O problema aqui é o custo transferido da responsabilidade de suplementar que cabe às operadoras de saúde, a partir da interpretação constitucional, ao SUS; um verdadeiro rabo que corre atrás do seu cachorro.
Nada há de sistema de saúde suplementar no modelo prático adotado pelas operadoras de saúde no Brasil, com o aval do Estado, e agora com a chancela do Colendo STJ, para o caso dos medicamentos de alto custo para tratamentos domiciliares. E isso afronta diretamente a Constituição Federal e mais ainda o SUS, o que faz urgente repensarmos a prioridade do SUS e o seu fortalecimento, inclusive com o necessário incremento legislativo a respeitar a Constituição Federal e obrigar a saúde suplementar a realmente ser complementar ao SUS e não o contrário.
Não é verdade que o Sistema Suplementar não deve prestar o direito fundamental à saúde de modo integral, no sentido de garantir o tratamento integral necessário ao seu paciente beneficiário. E essa tem sido a tônica dos recentes precedentes do Colendo STJ, principalmente desde 2016. São 5 anos de retrocessos, s.m.j., nos direitos dos pacientes beneficiários dos planos de saúde, que vem a galope, somados ao incremento, por consequência, das responsabilidades do SUS de arcar com esse complemento que o setor da saúde suplementar tem recebido de bandeja como desoneração.
Falta leitura sistemática e de base constitucional quanto ao claro e evidente desenho da saúde pública e privada na Constituição Federal. Se isso ocorresse, seriam garantidos os ditames e princípios da saúde escritos na Constituição Federal a obrigar o atendimento integral e verdadeiramente complementar à saúde, aos planos e seguros de saúde, de modo a fortalecer o SUS, e não o contrário. De quebra, as disposições infraconstitucionais que se opõem à definição dasmesmas normas constitucionais e do direito fundamental à saúde coletivo e individual deveriam ser declaradas nulas e inconstitucionais, nas leis e na regulação da saúde suplementar principalmente.
Antes de 1988 a saúde não era direito universal, coletivo e individual, e não era a todos prestada de modo integral, equânime e gratuito.Mas, com uma força de superação, o sistema público de saúde, o nosso SUS, foi assim concebido para mudar a situação de antes.
Ao seu passo, a Constituição não se furtou a garantir que os particulares poderiam atuar de modo complementar ao SUS, mediante contratos e convênios com entes públicos (não são convênios médicos, ou planos de saúde, que fique claro); e a assistência à saúde seria prestada pelo Estado, por si, ou através de particulares.
Sobretudo, estabeleceu a Constituição Federal de 1988 que a saúde é serviço de relevância pública, mesmo que prestado pelo Estado ou por pessoas privadas.
O sistema público se torna evidentemente incapaz de fazer frente aos custos crescentes da saúde e do atendimento dos avanços tecnológicos da medicina, se o sistema privado não se obriga a custear os tratamentos mais caros e os sinistros aplicáveis aos seus beneficiários que incorrem no evento do seguro de saúde.
Acresce-se ao fato a existência das previsões da PEC do teto, em que os investimentos em saúde até 2038 são congelados em relação ao PIB, e isso indica a perda ano a ano e constante de orçamento do SUS.
A conta, assim, não fecha. O resultado provável, que poderemos assistir enquanto sociedade, é a tendência de falência do SUS, cada vez mais obrigado a custear procedimentos negados pelos planos de saúde aos seus beneficiários, e que cada vez menos se obrigam a ressarcir o SUS; o incremento da ausência de tratamentos de saúde aos beneficiários de planos de saúde, e o aumento da parcela de mercado e do lucro das operadoras de saúde no Brasil nos próximos 20 anos, como a passos largos vem ocorrendo.
E como efeito a reboque teremos o aumento da incidência de eventos de falências familiares com o custeio de valores “out of pocket” de tratamentos de alto custo em saúde, notadamente para doenças graves e com risco iminente à vida e de causação de lesões graves e irreversíveis, e que demandam novas e caras tecnologias em saúde, pois estão sendo expurgados da cobertura obrigatória dos planos de saúde, e ao mesmo tempo não serão elegíveis para o atendimento integral em saúde pelo SUS, haja vista a necessidade de não ter recursos financeiros para acionar o SUS judicialmente (Repercussão Geral – STF -RE 566471/RN) paraa concessão judicial da prestação pública de saúde, somado ao avanço lento da incorporação de novas tecnologias em saúde no SUS e na saúde suplementar, por motivos pouco claros.
A relevância pública do serviço de saúde é incontestável, é pressuposto e corolário de qualquer prestação de assistência à saúde realizada no país.
Assim, temos três tipos de atividades particulares na saúde: A saúde estritamente privada, em que instituições de saúde e profissionais de saúde contratam diretamente com pacientes seus atendimentos e assistências de saúde, que são serviços de relevância pública; a saúde complementar, prestada através de contratos dos particulares com o Poder público, como no caso dos hospitais, médicos, e Organizações de Saúde, que prestam serviços de relevância pública de saúde ao Estado e aos beneficiários do SUS, e que são entendidos como prestadores complementares ao SUS; e existe a saúde suplementar, em que empresas privadas, densamente regulamentadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, com registro e autorização para atuarem, prestam o serviço de relevância pública da assistência à saúde na qualidade deoperadoras de saúde, diretamente aos seus beneficiários (os beneficiários da saúde suplementar).
O movimento de liberação das operadoras de saúde para alçar voos maiores, de captação de mais uma parcela do SUS e que lhes permita regurgitar ao sistema público o ônus do que deixarem de fazer, é a terraplanagem para que os chamados planos de saúde de baixo custo possam ser oferecidos, sem serem obrigados sequer a seguirem os ditames do plano de referência previsto em lei. Algo como que a barbárie, a permitir que o sistema suplementar lucre com o oferecimento de planos-sem efeito que não cobrirão tratamentos de seus beneficiários, mas apenas consultas e exames básicos, mantendo o usuário fiel ao SUS, novamente em detrimento da complementariedade do desenho do sistema suplementar a partir da Constituição Federal, transferindo ônus adicionais ao SUS. Como sempre, diga-se.
O movimento jurisprudencial que, embora bem intencionado, retira ônus do setor da saúde suplementar pode ser resumido a partir de 4 temas que avançaram em detrimento dos direitos dos beneficiários dos planos de saúde nos últimos anos: 1) a eliminação do direito do aposentado de manter seu plano de saúde recebido gratuitamente do seu empregadorpor não ter contribuído ao plano de saúde, 2) a possibilidade de reajustes por idade mesmo após os 60 anos de idade em contratos antigos, 3)o entendimento dissidente de que o rol da ANS seria taxativo das possibilidades terapêuticas cobertas aos usuários de planos de saúde e, mais recentemente, 4) a desobrigação dos planos de saúde à cobertura de medicamentos para uso domiciliar se não forem antineoplásicos e relacionados, se estiverem fora do regime de homecare, se não constantes do rol da ANS e se não cobertos expressamente no contrato.
Embora a lei preveja bases para estas limitações, a Constituição Federal prevê a assistência integral e complementar à saúde como parâmetros necessários do sistema, e assim, a lei infraconstitucional é invocada em detrimento da Lei maior.
Vejamos os próximos passos, mas o lucro das operadoras de saúde e a sua receita anual tem sido crescentes ano a ano, e assim devem seguir, enquanto que o orçamento do SUS está congelado, e a tendência é que receba novos clientes habituais e permanentes, para tratamentos de alto custo e na melhor fase da vida dos beneficiários da saúde que não suplementa e que não é em nada complementar.