Por Thiago Merlo Raymundo e Esnalra Sineria Vitória Lima dos Anjos
A Lei 11.101/2005 dispõe acerca do instituto da Recuperação Judicial e Falência. A respeito da Recuperação Judicial, que é o objeto em voga, o instituto visa auxiliar a sociedade empresarial, plenamente viável, a superar a momentânea crise econômico-financeira, de forma a possibilitar a sua reestruturação e consequentemente a continuidade de sua atividade e com isso o exercício de sua função social, conforme disposto no artigo 47 da referida lei.
Partindo da premissa de superação da crise econômico-financeira, o plano de recuperação judicial traz, impreterivelmente, os termos e condições em que a recuperanda procederá com o adimplemento de suas obrigações para com seus credores. Ressalta-se que quando a sociedade empresarial busca a tutela estatal por meio do instituto recuperacional encontra-se com débitos em alta soma, porém, nem todas as obrigações e/ou credores estão sujeitos ao plano recuperacional e, dentre estes está o crédito da Fazenda Pública, conforme disposto no art. 187 do CTN de que “a cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento”.
Em que pese o crédito da Fazenda Pública não se sujeitar à habilitação no processo recuperacional, o ordenamento exige do Contribuinte a regularidade do passivo tributário (art. 191-A do CTN e art. 57 e 58 da Lei 11.101/2005), devidamente comprovado por meio da competente Certidão Negativa de Débitos quando do adimplemento integral da obrigação ou mesmo a Certidão Positiva com Efeito Negativo, quando os débitos estão revestidos de causa suspensiva da exigibilidade, como no caso de parcelamento (artigo 151, 205 e 206 do CTN), para que lhe seja concedida a recuperação judicial.
Contudo, tal imposição legal tem sido um óbice para as Recuperandas, pois, invariavelmente, a obrigação fiscal estará em um patamar suntuoso, considerando que esta é uma das primeiras a ser inadimplida pela empresa em crise financeira, não por menosprezo à função social do tributo, mas porque a ausência desse recolhimento não ensejará, de imediato, a interrupção da atividade empresária. Desta feita, a exigência de regularidade do passivo tributário como condicionante para concessão da recuperação se revela uma contradição no ordenamento, o qual deve ser harmônico, com vistas a alcançar a finalidade da norma, que é o soerguimento da crise e a preservação da atividade empresarial.
O primeiro ponto a ser observado é que o crédito da Fazenda Pública não se sujeita à recuperação judicial, nem aos seus efeitos. As execuções fiscais têm seu trâmite regular, o que veio a ser ratificado por meio da alteração da lei de recuperação judicial introduzia pela Lei 14.112/2020, ao incluir a redação do §7º-B ao art. 6º da Lei 11.101/2005, circunstância esta que inclusive deu ensejo à desafetação de precedente que seria julgado pelo STJ em sede de recurso repetitivo, sob o tema 987, por perda de objeto.
Além de o crédito fiscal ter o privilégio de não se sujeitar a habilitação e a Fazenda Pública poder perquirir a satisfação da obrigação por meio do trâmite regular das ações executivas, o Contribuinte encontra ainda impedimento para o exercício de seu direito de ter condições diferenciadas que lhe propicie a regularidade do passivo. Além de prazo exíguo para pagamento do suntuoso passivo, as regras de parcelamento lhe impõe a renúncia ao exercício do direito de defesa. Impende ressaltar que nem toda defesa sujeita o crédito à suspensão da exigibilidade.
Tais circunstâncias colocam o Contribuinte no impasse de por vezes conseguir a aprovação dos credores privados, sujeitos ao instituto, porém incorrer no risco de convolação em falência por inviabilidade de regularizar passivo que sequer se sujeita aos efeitos da recuperação judicial, circunstância esta que não se mostra eficaz nem mesmo para o Fisco que, apesar do privilégio na ordem de pagamento na falência, não é o primeiro na ordem de pagamento, logo, incorre no risco de não ter a satisfação do seu crédito na falência.
Levada a questão ao Poder Judiciário, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, mesmo após a vigência da Lei 14.112/2020, tem se posicionado no sentido dispensar a comprovação da regularidade fiscal, em razão da aparente contradição existente no ordenamento, vez que tal exigência se mostra desproporcional e resulta em comprometer a finalidade do instituto da recuperação judicial (REsp 1864625, AgInt no AREsp 1688818, AgInt no REsp 1740070).
A matéria foi levada à Suprema Corte por meio da Reclamação nº 43.169. Na ação a Fazenda Nacional pediu pela observância aos dispositivos do Código Tributário Nacional, bem como da Lei de Recuperação Judicial, para que a Recuperanda apresentasse a comprovação de regularidade fiscal, nos termos dos artigos 57 e 58 da Lei 11.101/05 e art. 191-A do CTN. Em que pese tenha sido concedida a medida liminar para que fosse observada a exigência legal, quando do julgamento do mérito da ação o Ministro Dias Toffoli decidiu por negar seguimento à reclamação e cassar os efeitos da liminar, vez que a matéria acerca da dispensa de apresentação de comprovação de regularidade fiscal em sede de recuperação judicial é de cunho infraconstitucional, ou seja, de competência do STJ e não do STF.
Nesse contexto, verifica-se a existência de impasse entre o disposto na norma infraconstitucional e os princípios norteadores do instituto, tendo prevalecido o entendimento de que a apresentação das certidões de regularidade fiscal não é condição indispensável para concessão da recuperação judicial vez que, mais do que a letra fria da lei, busca-se o alcance da finalidade do instituto da recuperação judicial que é a preservação da empresa e sua função social.