Por Andrea Brick e Maurício Sada Neto
Em agosto de 2021, foi promulgada a Lei n° 14.193/2021, denominada Lei da Sociedade Anônima do Futebol (“LSAF”). Além de alterar artigos do Código Civil e da Lei do Desporto, a normativa institui “a Sociedade Anônima do Futebol e dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico”.
A LSAF é fruto de um clamor antigo das instituições futebolísticas no Brasil: o necessário reconhecimento dos clubes de futebol como efetivas empresas. O cerne por trás desse anseio é a recuperação econômica dessas associações, que, há muito, encontram-se em situação de extrema dificuldade financeira.
A lei estabeleceu a possibilidade de os clubes se transformarem em sociedades anônimas e postularem a centralização das execuções trabalhistas e cíveis ou, ainda, recuperação extra ou judicial. Caso optem pela adesão ao regime de centralização das execuções (“RCE”), no que se refere às execuções de natureza trabalhista, os clubes deverão requerê-lo perante a Justiça do Trabalho, ao passo que em relação às de natureza cível, perante a Justiça Estadual.
Este entendimento, aliás, foi recentemente chancelado pelo Superior Tribunal de Justiça no Conflito de Competência nº 184.923/RJ, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, instaurado pelo Club de Regatas Vasco da Gama. O clube pretendia, em sede de liminar, o reconhecimento do Juízo Cível como “o único competente para decidir acerca do pagamento de seus credores, tanto os titulares de créditos de natureza civil como trabalhista”. A julgadora indeferiu o pedido liminar para, com base na LSAF, assegurar a “competência estabelecida em lei para ambos os juízos suscitados”.
Não se nega a competência dos juízos (trabalhistas e cíveis) para processar e julgar os RCEs, devendo-se observar, é claro, a natureza dos créditos. Até porque, a própria lei assim o dispõe. Há, porém, uma singela problemática que pende ainda de uma melhor análise pelos operadores de direito: em que pese haver dois “juízos universais” para processá-los, o “plano” para pagamento dos credores (tanto cíveis, como trabalhistas), ao menos em tese, haveria de ser uno, inteiriço. Afinal, não haveria como coexistir, simultaneamente, dois planos, um para o adimplemento dos créditos cíveis e outro para os créditos trabalhistas. Esse, ao que parece, não foi o intuito do legislador.
Admitir eventual coexistência de dois “planos” implicaria, até mesmo, em ofensa a artigos da LSAF. A começar pelo inciso I, do artigo 10, por exemplo. O legislador, ao dispor acerca da destinação do percentual de 20% decorrente das receitas mensais auferidas pela SAF, fez expressa menção a “plano aprovado pelos credores” e não a “planos”.
Entendimento contrário daria margem a interpretação no sentido de que o percentual acima destacado se referiria apenas ao plano elencado em um determinado RCE (trabalhista ou cível) e, pior, que seria possível destinar um total de 40% da receita da SAF (art. 10, I) para o adimplemento dos planos dos RCEs trabalhista e cível, o que poderia ser considerado até mesmo um óbice ao soerguimento e reestruturação do clube.
O mesmo pode ser dito sobre os prazos estabelecidos para o adimplemento do plano. O artigo 15 estabelece o prazo de seis anos para que a SAF efetue o pagamento dos seus credores. Já o seu §2º dispõe que, em caso de adimplemento de ao menos 60% do passivo até o último ano previsto no caput do artigo 15, será permitida a prorrogação do RCE por mais quatro anos.
Não parece razoável que o legislador tenha admitido um fracionamento em relação à destinação das receitas para o pagamento dos débitos cíveis e trabalhistas ou, ainda, que a SAF deverá adimplir simultaneamente o que restou deliberado nos RCEs trabalhista e cível. Se assim o fosse, evidentemente que os prazos estipulados nos respectivos “planos” não conseguiriam ser quitados a tempo e a modo. Ainda mais se o clube detiver um enorme passivo trabalhista.
Isso ganha ainda mais relevo ao se observar que o artigo 18 da LSAF estabelece que os créditos de natureza trabalhista terão privilégio — serão pagos prioritariamente — em relação aos de natureza cível. Se assim o é, é certo que não se poderia admitir a coexistência de dois planos distintos. Do contrário, haveria a sobreposição de preferências e de prazos para o cumprimento das obrigações, o que tornaria impraticáveis os termos estabelecidos no artigo 15.
Tudo leva a crer que, embora se admita a possibilidade de coexistir dois RCEs (um perante a Justiça do Trabalho e outro a Justiça Estadual), o plano para adimplemento dos credores deverá ser uno e indivisível, porquanto os prazos nele fixados devem se amoldar às prioridades e preferências elencadas na LSAF. Os RCEs precisam manter consonância entre si, sob pena de haver uma sobreposição de prazos (e possíveis conflitos de preferências) para o adimplemento das obrigações.
A individualidade do plano é matéria de extrema complexidade que, dado o pouquíssimo tempo de vigência da LSAF, pende, ainda, de uma interpretação mais densa perante os tribunais pátrios.