Por Rubens Boicenco e Rafael Serrano
Muito tem se falado sobre a insegurança jurídica que se instaurou com a publicação da Lei Complementar LC 190/2022 em 05/01/2022 que trata do ICMS DIFAL, assim entendido como o ICMS incidente nas operações interestaduais para consumidor final não contribuinte do imposto localizado em outra unidade federativa. Basicamente, a discussão gira em torno da aplicação ou não do princípio constitucional da anterioridade sobre a data de publicação da LC 190/2022.
De um lado, os contribuintes defendem que, uma vez que o ICMS DIFAL representa uma nova relação jurídico-tributária entre o remetente dos bens e serviços e o Estado do destinatário, conforme decidido pelo STF no julgamento do RE 1.287.019, essa nova relação resulta em um novo tributo, o que enseja a aplicação do princípio constitucional da anterioridade (i.e., anual e nonagesimal) a partir da data de publicação da LC 190/2022, fazendo com que a os Estados e Distrito Federal possam exigir o referido imposto somente a partir do exercício de 2023.
De outro, as unidades federativas, embora reconheçam que o ICMS DIFAL representa uma nova relação jurídico-tributária, alegam que tal relação não resulta em um novo imposto, mas em uma mera redistribuição de receitas entre os Estados de origem e destino. Assim, não caberia a aplicação do princípio da anterioridade, o que significa que o ICMS DIFAL já poderia ser exigido logo após a publicação da LC 190/2022.
Com esses argumentos, o Estado de Alagoas ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 7070 junto ao STF contra o art. 3º da LC 190/2022 que determina a observância ao princípio da anterioridade para a produção de seus efeitos. Ao defender que o ICMS DIFAL não representa um novo imposto, o Estado alega que não estariam presentes os requisitos constitucionais para a aplicação da anterioridade, de tal forma que a sua imposição pela LC 190/2022 violaria o princípio federativo.
Cabe destacar que, para a aplicação do princípio da anterioridade, a Constituição Federal exige que a nova lei crie um novo tributo ou majore um existente. Assim, resta saber se a inauguração de uma nova relação jurídico-tributária em torno do ICMS DIFAL representa ou não um novo tributo. Para tanto, torna-se necessário definir o que é tributo.
Dentre as acepções do termo “tributo” contidas nos textos normativos apontadas pela doutrina, destacam-se aquelas que referem ao tributo como: i) direito subjetivo do Estado; ii) sinônimo de relação jurídico-tributária; iii) norma jurídica; e iv) prestação correspondente ao dever do contribuinte.
Rapidamente se observa que a nova relação jurídico-tributária do ICMS DIFAL resulta em um novo tributo, pois inova em todas as acepções ao, respectivamente: i) atribuir ao Estado de destino um direito que antes não lhe cabia; ii) representar uma nova relação jurídico-tributária que se dá entre o remetente e o Estado do destinatário do bem ou serviço; iii) introduz uma nova norma jurídica que obriga o remetente a pagar o diferencial de alíquotas entre a interestadual e a do Estado de destino à este último; e iv) impõe ao remetente uma nova prestação.
Adicionalmente, cabe analisar a definição de tributo contida no art. 3º do Código Tributário Nacional que diz: “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.
Nota-se que, ao mencionar o termo “prestação”, o CTN abraça a acepção de relação jurídico-tributária, uma vez que toda prestação é objeto de uma relação que se dá entre devedor e credor. Por reflexo, também abraça as acepções de direito subjetivo do Estado, dado o caráter compulsório da obrigação tributária, e de prestação correspondente ao dever do contribuinte. Como visto, por tais acepções abarcadas pelo CTN, podemos dizer que o ICMS DIFAL representa um novo tributo.
Adicionalmente, por meio da expressão “instituída em lei”, pode-se evocar a acepção do tributo como norma jurídica, sendo esta a única via capaz de fazer surgir a relação jurídico tributária e que deve resultar de lei editada por agente competente. Nesse sentido, observa-se que, conforme demonstrado pelo Ministro Dias Toffoli no referido julgamento do RE 1.287.019, as normas anteriores ao ICMS DIFAL não eram suficientes para que este tributo fosse exigido, sendo necessária a edição de novas leis dos Estados e Distrito Federal para, após a edição da LC 190/2022, permitir a exação.
Assim, conclui-se que, falar na criação de uma nova relação jurídico-tributária para o ICMS DIFAL é falar na criação de um novo tributo, o que exige a observância ao princípio da anterioridade para a determinação do momento a partir do qual o imposto poderá ser exigido. Resta então saber qual é o termo inicial para a aplicação do referido princípio.
A Constituição Federal indica como termo inicial, tanto para a anterioridade anual quanto a nonagesimal, a data de publicação da lei que institui ou majora tributo, sendo esta entendida como a lei que permite a incidência do novo tributo ou de sua majoração. Para o ICMS DIFAL, temos duas situações: 1) Estados que publicaram suas leis instituidoras do ICMS DIFAL após a LC 190/2022; e 2) Estados que publicaram suas leis antes da referida Lei Complementar.
Na situação 1, a lei que permite a exigência do ICMS DIFAL é a própria lei do Estado, devendo a anterioridade ser aplicada a partir da data de sua publicação. Na situação 2, a lei que permite a exação é a LC 190/2022 e não a lei estadual, devendo-se, portanto, aplicar a anterioridade (anual e nonagesimal) a partir da data de publicação da LC 190/2022. Como exemplo da situação 2, tem-se a Lei 14.470/2021 do Estado de São Paulo publicada em 14/12/2021, cuja exigência do ICMS DIFAL deve se dar apenas a partir de 01/01/2023.
Nesse sentido entendeu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Processo nº 3000383-58.2022.8.26.0000) ao manter a liminar concedida pela 16ª Vara da Fazenda Pública da Capital que, em mandado de segurança impetrado por Condor S/A Indústria Química, deferiu o pedido liminar proibindo o Estado de São Paulo de não exigir o ICMS DIFAL antes de 01/01/2023. Na decisão, o Desembargador Eduardo Gouvêa, observou que “a Lei Estadual sobre a cobrança do DIFAL nº 14.470/2021, publicada em 14/12/2021, não teria observado o princípio da anterioridade geral, levando-se como termo inicial a edição da LC 190/2022 (…)”.
No entanto, observa-se que tem havido decisões judiciais alinhadas à corrente contrária aos contribuintes, como a que se deu no Processo nº: 1012495-52.2021.8.26.0510 da 1ª Vara da Fazenda Pública do Foro de Araraquara em que o juiz indeferiu o pedido de liminar ao entender que “não se trata de violação do princípio da anterioridade anual ou nonagesimal, justamente por não se referir à criação de imposto novo ou majoração de um imposto existente”.
Nesse contexto de insegurança jurídica, já há relatos de contribuintes que já sofreram com o impedimento do trânsito de mercadorias ou a sua apreensão pela fiscalização, por conta do não recolhimento do ICMS DIFAL.
Assim, respondendo a questão trazida no título, com base na doutrina e na Constituição Federal, concluímos que a razão está com o contribuinte. Porém, diante das iniciativas dos Estados em cobrar o ICMS DIFAL em 2022, bem como de algumas decisões do judiciário contrárias ao contribuinte, vemos que muita água deve ainda rolar pelo rio da insegurança jurídica que passa sob a ponte do ICMS DIFAL. Para dirimir a insegurança, esperamos que as decisões do STF nas ações que tratam sobre o tema (ADI 7070 e 7066) se deem com a maior brevidade possível, lembrando que, ainda que possam se dar em favor dos contribuintes, podem vir acompanhadas de modulações de efeitos. Mas esta seria a história de uma outra ponte.