Mauro Conte Filho, Ian Delgado e João Carlos Molisani
O advento da era digital e das inúmeras soluções desenvolvidas durante esse período transformou drasticamente a vida em sociedade, quebrando paradigmas nas mais diversas áreas.
Quando fazemos um exercício de recordação e olhamos para o passado, é notório que nosso cotidiano foi completamente modificado. De todo modo, apesar da mudança promovida pela tecnologia ter ocorrido de forma geral, ela ficou ainda mais evidente na forma como passamos a consumir produtos e serviços.
Através da grande disponibilidade de informações, da conectividade global e da facilidade de acesso à comunicação, foi possível notar a massiva entrada de players no mercado, que atendem os anseios do público, cada vez mais dinâmico e exigente, de forma imediata e personalizada.
Diante desse cenário, surgiram os serviços On Demand, oferecendo aos consumidores a possibilidade de acessar, de forma prática e rápida, uma variedade considerável de produtos sob demanda, ou seja, de acordo com a disponibilidade do próprio usuário, impacto este que exigiu a adaptação por parte dos antigos detentores do mercado. Como exemplo, podemos citar a indústria áudio visual, que foi extremamente impactada e precisou passar por uma transformação profunda no método tradicional de televisão e cinema, para fazer frente às plataformas de streaming, como a Netflix e o Spotify.
Por outro lado, aqueles que ousaram em não acompanhar a transformação do setor e se limitaram a permanecer com as atividades de sempre, resultaram no ostracismo, tal qual a Blockbuster, considerada a maior rede de locadoras do mundo em seu auge, que decretou falência e encerrou suas atividades após a revolução digital.
Com a consolidação dessas atividades e à medida que as empresas de serviço de streaming superam alguns dos canais de televisão tradicionais em crescimento, audiência e faturamento, as autoridades governamentais do mundo todo voltaram as atenções para a regulamentação e, consequentemente, a tributação desses serviços específicos, começando a discutir, estudar e, em alguns casos, implementar cobranças.
Esse movimento não seria diferente no Brasil que, na busca pela atualização de seu ordenamento jurídico, promoveu, recentemente, uma ampla reforma tributária. A reforma em questão, visa, em suma, simplificar a cobrança de impostos sobre o consumo, incentivando o crescimento econômico e a desburocratização do processo tributário brasileiro, considerado um dos mais complexos do mundo.
Ao analisar o texto legal aprovado, é notório que as empresas de telecomunicações, audiovisual e streaming serão uma das mais, mas não as únicas, impactadas com as alterações aprovadas, que afetarão, de forma geral, o setor de prestação de serviços.
Por mais que não exista disposição expressa no texto-base da Reforma acerca do On Demand, a previsão do aumento da carga tributária ocorre devido a mudanças nas alíquotas e bases de cálculo dos impostos sobre serviços prestados, resultando em impacto direto nos custos operacionais das empresas.
Contextualizando, atualmente as empresas de streaming recolhem o ISS (Imposto Sobre Serviços), em alíquota máxima de 5% sobre o valor da atividade realizada, além do PIS e a Cofins, que, somados, chegam à porcentagem máxima de 9,25% sobre o faturamento/renda.
Embora sem alíquotas definidas, o texto da reforma criou o Imposto Sobre Valor Agregado (IVA), dividido entre o IBS e a CBS, que incidirá sobre o fornecimento de bens e serviços, com alíquota estimada em 27,5%, contribuindo para o aumento da tributação do setor.
Em outras palavras, por mais que a simplificação do processo de cobrança de tributos reduza os custos e despesas operacionais dele decorrentes, a economia gerada pode não ser suficiente para compensar o aumento do ônus fiscal, que poderá chegar a 45%, caso concretizada a alíquota estimada.
A expectativa por uma alíquota-base elevada, ainda sujeita a definição por meio de Lei Complementar, surge da concessão de tratamento diferenciado a diversos setores da economia, os quais serão beneficiados com um regime especial de tributação, tendo alíquotas zeradas ou com redução de 60% do IVA quando a reforma for totalmente implementada. Ou seja, a redução para determinados setores resultará no aumento das alíquotas para aqueles não contemplados pelo benefício fiscal, de forma a reequilibrar a arrecadação dos entes federativos.
Sob outra perspectiva, quando há um aumento na tributação, as empresas têm algumas opções para manter suas margens de lucro. A principal e mais comum é repassar parte do ônus fiscal para o consumidor, seja de forma direta, aumentando o preço dos produtos disponibilizados, ou de forma indireta, através de estratégias como a redução de descontos ofertados, custos internos e qualidade dos produtos. Dessa forma, é possível que haja uma diminuição no número de usuários das plataformas digitais e, consequentemente, sua migração para serviços ilegais e mais baratos, o que traria um grande prejuízo, não só para a indústria, mas também para o Estado.
Além das mudanças promovidas pela reforma tributária, existem alguns projetos de lei, como o PL 8.889/17 e o PL 2.331/22, que também terão influência direta nas atividades do setor. Em resumo, o objetivo das propostas é regulamentar essas empresas, para que sejam equiparadas aos serviços tradicionais de mídia e, assim, passem a recolher a contribuição para o fomento do cinema nacional, a Condecine.
Nos Estados Unidos da América, já existem impostos que incidem sobre produtos digitais e On Demand. Os formatos e nomenclaturas variam em cada região, posto que os estados norte-americanos têm autonomia para legislar e criar impostos dentro de suas jurisdições, porém o princípio de tributar empresas cujos serviços são direcionados ao streaming é fator comum em diversas regiões, como na Pensilvânia, na Flórida e em Washington.
Na Pensilvânia, o Imposto sobre Produtos Digitais incide sobre a venda de produtos digitais, incluindo músicas, filmes, e-books e aplicativos, independentemente do formato de entrega, seja por download, streaming ou outra forma de acesso digital, o que resulta em uma taxa adicional incidente sobre qualquer produto desse tipo. Na Flórida, o Communications Services Tax é cobrado em diversos serviços de comunicação, mas nem todos os streamings estão sujeitos ao pagamento do tributo, pois, de acordo com as definições legais, alguns podem ser classificados como serviços de comunicações. Já em Washington, o Digital Entertainment Tax incide sobre a receita bruta gerada pelo On Demand de vídeo, áudio e jogos, sendo uma abordagem específica para tributar aplicativos de entretenimento digital, visando capturar uma parcela da receita gerada por esses serviços cada vez mais populares.
Ao compararmos os exemplos da legislação americana com o cenário brasileiro, é possível identificar que existem pontos em comum com os Estados da Flórida e de Washington. Com relação ao primeiro, o Brasil possui a mesma dificuldade com os tributos indiretos, pois o texto legal abre margem a diversas interpretações, muitas vezes ensejando a judicialização das questões. Já em relação ao segundo Estado, percebe-se uma proximidade com a proposta do texto do PL 8.889/17 e do PL 2.331/22, qual seja, a tributação sobre uma parte da receita total gerada pelos serviços digitais.
Analisando de forma detalhada as mudanças regulatórias no Brasil, é perceptível que toda a cadeia de produção de conteúdo será impactada. Ainda que as alterações não tenham sido concluídas, fato é que as empresas de streaming terão o desafio de adaptar suas margens de lucro frente à pressão fiscal. Caso confirmada a incidência de alíquotas maiores, há a possibilidade de repasse do custo aos consumidores, que, ao final do dia, seriam os maiores prejudicados. Por outro lado, a estratégia poderá afetar a competitividade do mercado e a acessibilidade aos serviços, favorecendo a ampliação de serviços ilegais e exigindo um delicado equilíbrio entre a lucratividade empresarial e a satisfação do cliente.
Diante do exposto, é notório que a situação é bem mais complexa do que se apresenta. Apesar da necessidade de se aprimorar as legislações vigentes, algumas das mudanças podem impactar toda a cadeia produtiva de diversos setores. Em resumo, à medida que navegamos nesse novo ambiente digital, é essencial encontrar um equilíbrio entre a sustentabilidade financeira das empresas, a proteção dos consumidores e o fortalecimento do Estado através da arrecadação de impostos.
Nesse ponto, se o intuito do Poder Executivo é fechar as contas com saldo positivo, talvez seja relevante reconsiderar sua forma de arrecadação, trazendo menos ônus às empresas e mais eficiência aos gastos públicos.
Mauro Conte Filho, sócio, Ian Delgado e João Carlos Molisani, advogados do Goulart Penteado Advogados