Por Cylmar Pitelli Teixeira Fortes
Tramitam hoje no Congresso Nacional duas grandes reformas tributárias: a que visa alterar todo o sistema de tributação do consumo, e a que trata do imposto sobre a renda.
A Constituição Federal de 1988 conformou nossa ordem tributária em seis partes: cinco no sistema tributário propriamente dito (artigos 145 a 156) e uma na ordem social (artigo 195), com princípios gerais (artigos 145 a 149), limitações ao poder de tributar (artigos 150/152), impostos federais (153 e 154), estaduais (155), municipais (156) e contribuições sociais (195).
Já o Supremo Tribunal Federal foi incumbido (artigo 102) do papel de guardar nossa Constituição.
Desde 1988, são de diversas ordens os problemas enfrentados no País em decorrência do arcabouço constitucional tributário e seus reflexos na vida das empresas e das pessoas. Destacam-se a incrível quantidade de normas editadas diariamente nos mais variados níveis da administração tributária, prima-irmã da complexidade fiscal, os relacionados ao princípio da não cumulatividade, a guerra fiscal entre estados e municípios (ICMS e ISS), a superposição de incidências (IPI, ICMS, ISS, Cofins, Pis e CIDES), entre outros.
Todos esses temas suscitam questões que frequentemente têm que ser dirimidas pelo STF. E as soluções encontradas pelo STF, não raro, surpreendem o meio jurídico e os mercados. Mas o pior é que, definitivamente, não têm contribuído para a tão almejada previsibilidade das decisões judiciais.
A apresentação do relatório da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 110 no Senado, reformando a tributação sobre o consumo, suscitou boas expectativas. Fato é que pela primeira vez, desde a Constituinte de 1988, conseguiu-se um consenso importante no âmbito dos Estados, oxalá tornando possível que seja finalmente aprovada uma reforma que enfrente ao menos parte dos graves problemas do nosso sistema em torno dos impostos sobre o consumo.
A criação de um IVA dual – que parece ter viabilizado o arranjo político que guarnece o consenso entre os Estados no que tange à reforma dos impostos sobre o consumo –, e a forma como a PEC endereçou questões importantes como a tributação no destino, a simplificação das alíquotas e a submissão dos entes federativos a uma norma nacional são notícias alvissareiras.
Descomplicar a legislação e simplificar o sistema é fundamental. O tempo gasto para cumprimento de obrigações tributárias no Brasil é um bom termômetro da gravidade da nossa situação. O Banco Mundial recentemente divulgou o relatório Doing Business Subnacional Brasil 2021, revelando que o tempo gasto pelo empresário brasileiro por ano para cumprir obrigações tributárias, considerando o preparo, a declaração e o pagamento, varia de 1.483 a 1.501 horas, tempo maior do que em qualquer outro país do mundo.
A reforma da tributação sobre a renda, de sua parte, foi aprovada pela Câmara dos Deputados e avançou para o Senado, que promete escrever novos capítulos.
Mas o que decidirá o STF acerca de tão relevantes mudanças, lá na frente, quando as inevitáveis disputas começarem a surgir e ele for chamado a decidi-las? Manterá o espírito e a intenção do legislador? Dará interpretação conforme a Constituição? Ou enxergará óbices intransponíveis, negando eficácia a certas disposições, gerando mais incerteza?
Não bastarão as reformas que se pretende fazer na Constituição, e as subsequentes na legislação complementar e ordinária, para que o sistema tributário torne-se hígido e dotado de razoável previsibilidade. Para que as empresas e as pessoas saibam, afinal, o que é o Direito posto, o que as pessoas políticas (União, Estados e Municípios) podem ou não podem fazer, é preciso que o Poder Judiciário aplique a lei, respeitando as decisões políticas do parlamento.
A forma como evoluiu a jurisprudência no Brasil desde a Constituinte conferiu ao Poder Judiciário um protagonismo inédito. Por isso, é mais que desejável que o todo Poder Judiciário, mas especialmente o Supremo Tribunal Federal, oscile o mínimo possível, seja capaz de gerar uma jurisprudência íntegra e harmônica com a Constituição e com seus próprios julgamentos anteriores, e sobretudo descolada da política e dos interesses mais imediatos das pessoas políticas ou de políticos e autoridades ligadas aos seus integrantes. Em outras palavras, seja capaz de gerar uma jurisprudência previsível e técnica, que assegure a rule of law, not of men!
Recentemente, tivemos o julgamento da chamada “tese do século”, que enfrentou o tema da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS. O resultado foi favorável aos contribuintes. Derivadas dessa tese, nasceram as chamadas “teses filhotes”, baseadas exatamente no mesmo raciocínio. Os contribuintes desejavam a aplicação do mesmo critério, do mesmo raciocínio, a situações jurídicas similares. Mas em relação às “teses filhotes” os contribuintes surpreendentemente vêm sendo fragorosamente derrotados.
O STF decidiu contrariamente aos contribuintes, por exemplo, nos casos da exclusão do ISS e do ICMS da base de cálculo da CRPB – Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (7 votos a 4). Obviamente, são respeitáveis as decisões da Suprema Corte e os fundamentos por ela adotados. No caso da exclusão do ISS e do ICMS da base de cálculo da CRPB, o STF entendeu que a CRPB é um benefício fiscal; portanto, se o cálculo fosse alterado, provocando a redução do tributo, o benefício restaria demasiadamente ampliado (RE1187264 e RE 1285845). Não parece fazer sentido que a Corte possa exarar entendimentos tão díspares em situações jurídicas similares.
O que se vê é que o STF, nesse como em tantos outros casos, inclusive mediante modulação dos efeitos de suas decisões, parece oscilar demais em sua própria jurisprudência. E a se distanciar do que dispõe a Constituição e do que deveria resultar da aplicação de seus princípios, decidindo por razões de ordem consequencialista-financeira, ou por alinhamento ou antagonismo a certos atores políticos; quiçá por razões políticas mesmo.
As sucessivas mudanças de entendimento na esfera penal talvez tenham sido outro exemplo eloquente do quanto a sociedade como um todo pode padecer diante de tanta oscilação da jurisprudência, imprevisibilidade e incerteza.
As reformas são necessárias, mas serão tábula rasa se o STF se negar a cumprir as decisões políticas do parlamento, e querer ele próprio fazer política. Isso não deveria ocorrer numa sociedade democrática.
Com a humildade aprendida em 31 anos de advocacia, tenho para mim que a sociedade precisa debater aberta e democraticamente certos métodos e poderes da Suprema Corte– e de todo o Poder Judiciário. É preciso trazer à baila, corajosamente, temas particularmente delicados, que a todos aflige, como a eficácia das decisões singulares dos senhores Ministros; a necessidade de manter-se suspensos, por anos a fio, julgamentos em que a maioria já foi formada (no Plenário ou nas Turmas), para colher-se voto pendente serôdio, que não terá o condão de alterar o resultado antes alcançado, entre outros. Fortalecer a Suprema Corte como instituição, mas reduzir o poder exacerbado que hoje exercem seus ilustres integrantes, é de mister para o fortalecimento de uma sociedade democrática de direito.
Ao mesmo tempo em que se discutem reformas substanciais na Constituição, como a que altera a tributação sobre o consumo e a renda, é desejável que se discuta também a via legal mais eficiente para fazer aproximar as decisões do STF aos comandos constitucionais, seja por meio de emendas à Constituição, ou projeto de lei para limitar poderes dos membros do Tribunal (sendo certo que esse projeto teria que ser chancelado pelo próprio STF…), pois como disse certa vez o Ministro Moreira Alves, a Constituição Federal é um instrumento, não resolve os problemas por si só.