Por Ricardo Chamon*
Fui provocado por um grande amigo, um empreendedor bem-sucedido no setor de tecnologia e atualmente conselheiro e consultor de empresas desse setor, a escrever algo sobre a relação entre Planejamento Sucessório e M&A. Ele queria ouvir a minha opinião sobre a forma como esses dois temas se correlacionam na prática, considerando que boa parte da minha atividade profissional, nos últimos 20 anos, tem sido dedicada a trabalhos que envolvem, direta ou indiretamente, um dos dois ou ambos.
No mundo do M&A, a ausência de um sucessor em potencial, ou de um sucessor devidamente preparado e disposto a assumir as responsabilidades do sócio fundador de uma empresa, é um motivo relevante e recorrente para que se considere seriamente a venda dessa empresa.
Obviamente, quanto mais a responsabilidade de comandar essa empresa ou grupo de empresas, independentemente do porte, estrategicamente (no Conselho) ou no dia a dia (como executivo), estiver concentrada na pessoa do fundador, maior será a necessidade de se criar uma solução adequada para a gestão desse risco tão comum, relevante e evidente, porém tão subestimado e frequentemente preterido.
Por “solução adequada” podemos pensar tanto em profissionalização + estruturação de governança + preparação dos sucessores para assumirem responsabilidades, quanto em um M&A que permita liquidar parcial ou totalmente a participação na empresa ou grupo de empresas para reduzir a exposição do patrimônio do fundador a esse risco, e simplificar a respectiva gestão, partindo da premissa de que gerir liquidez pode ser muito mais simples (não disse fácil!) e bem menos arriscado do que gerir uma empresa.
Paralelamente, no mundo do Planejamento Sucessório, a existência de qualquer participação societária relevante como parte do patrimônio do indivíduo que pretende planejar a sua sucessão, especialmente nos casos em que tal participação esteja atrelada a uma função executiva desse indivíduo, exige um cuidado especial em aspectos como:
- a) identificação da existência ou não de um herdeiro natural;
- b) definição da forma de encaminhar a sucessão desse ativo entre os herdeiros, compartilhando entre todos ou segregando/individualizando e compensando os demais;
- c) discussão quanto à possibilidade ou até necessidade de se buscar um M&A caso a análise dos aspectos “a” e “b” leve as conclusões nessa direção.
Ou seja, não é nada incomum, ao longo dos estudos em torno do planejamento sucessório de empresários que tenham fundado e continuem controlando, após muitos anos, empresas grandes e muito valiosas que representem parcela significativa do patrimônio total familiar, concluir que a venda, integral ou parcial, dessas empresas seja o melhor caminho para viabilizar o planejamento sucessório de modo seguro e menos propenso a gerar conflitos de interesse entre os familiares que possam, inclusive, colocar em risco a continuidade e integridade dos negócios.
Apresento alguns casos práticos com os quais me deparei ao longo da minha carreira, e que certamente permitirão um entendimento mais profundo e detalhado dessa relação tão íntima entre esses dois mundos.
Os imprevistos que podem afetar a sucessão, induzir o M&A, porém dificultando a condução
Esse caso envolveu uma grande indústria nacional, muito lucrativa, constituída no Brasil por um conglomerado multinacional e posteriormente vendida a um empresário brasileiro. Assim, tornou-se uma empresa de atuação local, pertencente a um único dono pessoa física, que adotava práticas compatíveis com as de grandes multinacionais.
Eu atuava como advogado desse empresário, prestando assessoria tanto nos assuntos da empresa quanto no que se referia ao seu patrimônio pessoal.
Recordo-me do dia em que ele mencionou um imóvel no exterior, vendido por um valor elevado, mas do qual ele não se lembrava da destinação dos recursos.
A partir desse fato, comecei a insistir na necessidade de organizar melhor o controle patrimonial e pensar em um planejamento sucessório. Todas as decisões estavam concentradas exclusivamente nas mãos dele. Em caso de um desaparecimento abrupto, o impacto sobre os negócios e o patrimônio familiar seria enorme.
Do momento dessa conversa até o início efetivo dos trabalhos de planejamento sucessório se passaram mais de cinco anos. Esse tema só se tornou prioritário quando ele retornou de uma viagem ao exterior e me chamou para uma conversa que me marcou profundamente.
Ele me contou que estava doente e não sabia como a doença iria progredir. Disse que eu deveria iniciar imediatamente o “plano” que vínhamos discutindo há anos.
Não é o caso de me prolongar sobre o impacto pessoal dessa revelação, mas, infelizmente, eu ainda não tinha a noção exata do estrago que as decisões subsequentes causariam nas relações familiares.
O “masterplan” do planejamento sucessório já estava pronto. Ele havia decidido qual dos filhos assumiria os negócios junto a ele e, posteriormente, em seu lugar. No entanto, a velocidade com que implementamos as medidas, seguindo estritamente o que ele e a esposa determinaram, ficou muito aquém do ideal.
Por conta da pressa, a comunicação entre pais e filhos, as justificativas e o preparo das partes envolvidas ficaram muito aquém do adequado. Isso deixou marcas e fraturas nas relações familiares, tornando o processo ainda mais difícil.
Alguns herdeiros, especialmente os que se sentiram preteridos, reagiram de forma agressiva. Todos que atuam em trabalhos dessa natureza sabem o quanto situações assim são vulneráveis à intromissão de terceiros, cujas ideias destrutivas, mas encantadoras, encontram ouvidos propensos a revidar supostas agressões.
A estrutura planejada suportou bem as agressões e questionamentos. A doença progrediu mais lentamente do que esperávamos, e a sucessão foi bem-sucedida, em grande parte graças ao talento e maturidade do herdeiro escolhido. No entanto, ao longo do tempo, a venda da empresa se tornou inevitável.
Lembro-me do herdeiro dizendo que, se a empresa fosse somente dele, ou se houvesse uma maneira de destiná-la apenas a ele, sem prejudicar os interesses da mãe e dos irmãos, ele não venderia naquele momento.
Contudo, a venda se revelou a melhor alternativa para todos. O processo foi concluído com êxito financeiro, mas deixou fraturas nas relações familiares, que se mostraram incuráveis, dada a intensidade das agressões e a influência de orientações mal-intencionadas de terceiros.
Nesse caso, é evidente a correlação entre planejamento sucessório e M&A. A demora no encaminhamento da questão sucessória, somada a um problema grave de saúde do fundador, prejudicou as relações familiares e fez da venda da empresa a única forma de reduzir os vínculos e interesses comuns.
Planejamento bem-feito, boa comunicação e alinhamento de interesses
Esse caso envolveu uma indústria que havia sido criada do zero por uma família de empreendedores e que, ao longo dos anos, antes de se consolidar, teve que enfrentar problemas societários, problemas esses que culminaram na divisão das áreas de atuação do grupo empresarial ao qual pertencia em entidades distintas, que foram posteriormente distribuídas entre os ramos da família dos fundadores como forma de eliminar os vínculos societários originais.
Uma dessas entidades tornou-se uma grande empresa, com atuação nacional, muito lucrativa, pertencente a um núcleo familiar comandado pelo pai (um dos fundadores do grupo empresarial original) e um dos filhos, tido como sucessor desde jovem, talvez pela afinidade com o pai e liderança natural, bem aceita pelos irmãos.
Eu tinha relação pessoal de amizade com esse sucessor e vinha sendo chamado a me aproximar dos negócios dele e atuar de modo mais efetivo em consultoria. Quando o patriarca faleceu, ele passou a me incluir diretamente nas discussões sobre alternativas de negócios envolvendo a empresa em questão.
Eu me lembro bem do velório do pai desse meu amigo e de como ficou evidente para mim que ele era a grande referência e liderança da segunda geração da família, muito distante dos demais herdeiros em termos de competência e experiência e ainda mais distante da terceira geração, pelo abismo existente entre as idades, já que todos os netos do fundador eram ainda muito jovens.
Esse abismo que eu mencionei acabou sendo preponderante na decisão de buscar uma transação que pudesse eliminar o risco que o desaparecimento precoce do líder da segunda geração representaria para a empresa, seus acionistas e colaboradores.
Obviamente havia a alternativa de profissionalizar totalmente a gestão e preparar a terceira geração para controlar societariamente a empresa, sem a necessidade de atuarem em cargos executivos, mas eu acredito que a memória dos problemas societários, que surgiram na fase inicial do grupo e que deixaram marcas profundas na família, foi decisiva na escolha de um M&A como saída.
Preparamos a empresa para o M&A, fizemos todas as lições de casa, antecipamos algumas situações e decisões e realizamos até mesmo uma due diligence prévia para garantir que estávamos conscientes de tudo aquilo que seria mapeado pelos potenciais compradores e para termos certeza de que nada havia escapado do nosso radar.
A família foi devidamente instruída, a liderança exercida proativamente e construtivamente pelo sucessor foi muito respeitada por todos e teve um papel fundamental na condução de um processo que foi muito bem-sucedido e culminou na venda integral da empresa a um grupo estrangeiro por valores e em condições compatíveis com as expectativas dos acionistas e com a importância da empresa no seu segmento.
Nesse caso, tal qual o anterior, vejo como evidente a correlação íntima entre planejamento sucessório e M&A, considerando que o falecimento do fundador e a concentração de responsabilidade num único sucessor, sem a identificação e o preparo adequado de um substituto emergencial para esse sucessor, acabaram tornando a venda da empresa algo quase que natural para eliminar o risco enorme e desproporcional que o desaparecimento abrupto do sucessor poderia representar para a família e para a continuidade da empresa.
A grande diferença está na atitude de se antecipar aos problemas e agir preventivamente, evitando improvisos e traumas, embora tal mentalidade, paradoxalmente, tenha se imposto justamente por conta dos traumas gerados pelos problemas societários e sucessórios vivenciados pelos sócios fundadores do grupo empresarial que deu origem à empresa que foi vendida no M&A ao qual me referi.
Planejamento sucessório pode viabilizar ou evitar um M&A
Nesse caso específico, a empresa pertencia a um único sócio, que havia adquirido as suas quotas do fundador 30 anos antes do início da minha atuação como assessor jurídico.
Nesses 30 anos o meu cliente liderou com mão de ferro e muita sabedoria um processo de expansão e consolidação que o tornou um ícone num setor específico de distribuição de produtos alimentícios.
A despeito do assédio natural de concorrentes e investidores, a possibilidade de um M&A nunca seduziu esse meu cliente, ainda que eu mesmo tenha revelado uma certa propensão a tentar convencê-lo do contrário, inclusive porque não enxergava nos filhos dele a mesma paixão do pai pelo negócio.
Em lugar de buscar uma transação, iniciamos um trabalho de planejamento sucessório, englobando tanto os aspectos jurídicos quanto os operacionais.
Em termos operacionais, fomos buscar um conselheiro muito experiente e totalmente “hands on” que induziu um processo de melhorias de gestão, eliminação de riscos e aprimoramento da segunda geração em termos executivos.
Em termos jurídicos, discutimos bastante os conceitos a serem utilizados, inclusive com os próprios herdeiros e com a mãe deles, desenhamos conjuntamente o modelo que nos pareceu adequado, planejamos detalhadamente o passo a passo e partimos para a implementação efetiva.
Atualmente, muitos anos após termos iniciado os nossos trabalhos, o meu cliente continua no comando, embora não mais ostensivamente, os filhos assumiram o dia a dia da empresa de modo compartilhado e com as competências bem definidas.
Um deles atua liderando o “front office”, especialmente na interação com fornecedores e clientes, o outro é o responsável pelo “back office”, no comando geral das áreas administrativas, e o terceiro filho, advogado, comanda a área jurídica.
À mãe, embora por opção não esteja ligada à operação da empresa e não participe ativamente das decisões estratégicas, foi reservado um papel de “mediação” no processo de sucessão, que terá lugar um dia na hipótese de desaparecimento do patriarca e de algum impasse entre os filhos no comando da empresa.
O trabalho do conselheiro, que foi tão relevante para levar a empresa para um outro patamar de solidez, segurança e eficiência, continua sendo feito, hoje de forma mais estratégica.
Devo dizer que aprendi muito com esse meu amigo tão obstinado e perseverante, inclusive porque duvidei que os filhos fossem ocupar os papéis que hoje ocupam e não achava que seria possível, ou até aconselhável, em determinado momento do processo, evitarmos o M&A como melhor alternativa para a família em diversos aspectos.
Fato é que ele nunca quis vender a empresa, não tem necessidade alguma de vendê-la, preparou seus sucessores, organizou a sua sucessão e continua usufruindo do que ele construiu ao longo de tantos anos.
Por outro lado, ele pode hoje simplesmente mudar de ideia e vender a empresa, se quiser fazer isso ou chegar à conclusão de que é o melhor para ele, para a família e para os seus colaboradores, fornecedores e clientes, ou deixar tudo pronto para que os filhos o façam, se quiserem, depois que ele não estiver mais por aqui, o que esperamos todos que ainda demore bastante para acontecer.
A importância do planejamento sucessório e sua essencialidade em um cenário que envolve M&A, especialmente para evitar danos causados por situações extremas e imprevisíveis
Trata-se de um grupo de empresas, criado por um casal de empreendedores, cuja trajetória se iniciou há mais de 30 anos, originalmente dedicando-se à comercialização de partes e peças de veículos e, mais tarde, à distribuição e comercialização de veículos e equipamentos agrícolas.
O sucessor do casal, filho único, que havia sido preparado para assumir o comando do grupo e demonstrava vocação e aptidão natural para tanto, faleceu repentinamente, deixando um filho pequeno e um enorme vácuo em termos sucessórios.
Nesse caso, a despeito da brutalidade que representa, por si só, a perda de um filho ainda muito jovem, seria de se esperar, caso tivesse sido planejada adequadamente a sucessão, que fosse aplicada automaticamente a condição de retorno dos bens doados originalmente ao filho à propriedade dos pais (genericamente chamada de “retrovenda”).
Não havendo a estipulação expressa dessa condição e tendo o falecido deixado herdeiro menor de idade, a viúva passou a tentar interferir nos negócios do grupo de forma não condizente com as expectativas e diretrizes dos fundadores.
Além do impacto imensurável da perda do filho, no âmbito pessoal, a problemática criada pela sucessão não planejada acabou criando, num momento especialmente inoportuno, um desgaste enorme, que só foi solucionado após uma dura negociação que culminou numa composição amigável entre o casal de fundadores e a viúva.
O fato de haver um processo de M&A em curso, naquele momento, relacionado a uma das empresas do grupo (que foi por onde eu acabei entrando em cena), tornou o contexto todo ainda mais complexo, já que as questões de representação e governança são primordiais à boa condução e implementação de qualquer transação.
Isso acabou culminando em inúmeras discussões sobre a necessidade de a viúva comparecer a determinados atos como interveniente, o que jamais teria acontecido se o planejamento sucessório desse grupo tivesse sido originalmente bem concebido e implementado.
Nessa situação extrema é fácil de se perceber a relevância do planejamento sucessório e quão essencial ele tende a ser num cenário envolvendo M&A, especialmente para evitar estragos potencialmente incalculáveis, causados por situações teoricamente imprevisíveis.
Creio que esse caso, da mesma forma que os 3 exemplos que eu mencionei anteriormente, serviu ao meu propósito inicial, de buscar exemplos práticos sobre a ligação bastante íntima entre Planejamento Sucessório e M&A. Basta pesquisar a quantidade de empresas extremamente bem-sucedidas, de capital aberto ou fechado, espalhadas pelo mundo inteiro, que são controladas por grupos familiares, para se ter uma noção da importância desse tema.
*Ricardo Chamon é sócio fundador do CSA Advogados, dedicado especialmente às áreas tributária e societária. Concentra hoje sua atuação em fusões e aquisições, estruturação de investimentos locais e internacionais, reestruturação de empresas e planejamento sucessório.