Por Laura Brito*
Desde sexta-feira passada a cena do avião em queda na região de Vinhedo toma a minha cabeça toda vez que fecho os olhos. A tragédia que se abateu sobre as famílias dos passageiros do voo da Voepass não me dá paz. Um acidente dessa magnitude desperta um luto coletivo e nos convida a refletir sobre a vivência e a acolhida do luto alheio.
O problema é que a nossa sociedade tem pavor do luto e parece que tudo é feito para evitá-lo, para atrapalhá-lo, para impedir que as pessoas possam vivê-lo plenamente a ponto de elaborar suas dores. E esse movimento aparece, inclusive, nas questões burocráticas e institucionais.
O procedimento para a emissão de uma certidão de óbito é a apresentação de um atestado de óbito no cartório de registro civil de pessoas naturais. Mas só há atestado de óbito se um médico atestou a situação e preencheu o formulário respectivo. Quando há uma tragédia como essa, não há declarações de óbito, a princípio. Então, pode ser necessária uma declaração de morte presumida por ser extremamente provável o ocorrido. Para tanto, é preciso prova de embarque, esgotamento de averiguações e uma sentença que fixe a data provável do falecimento.
O problema é que o prazo para a providência da certidão de óbito no Brasil é de quinze dias. Se não for possível fazê-lo, é preciso uma ação específica, a de registro de óbito tardio. Eu já tive que fazer uma ação como essa na qualidade de advogada e a sensação é kafkiana.
Veja como são colocadas camadas e camadas de dificuldades para a solução das demandas burocráticas advindas da perda de um ente querido em circunstâncias trágicas. Tudo isso dificulta o luto.
Concorrendo com os prazos da certidão de óbito estão os prazos de inventário e declaração de imposto de transmissão. Não bastasse, em casos como esse pode ser necessário comprovar a ocorrência de comoriência, quando pessoas que são herdeiros entre si morrem sem que seja possível precisar se um faleceu antes do outro. Assim, presume-se que foram juntos e um é excluído da sucessão do outro.
Se você está cansado de ler tanta burocracia, imagine quem vivencia isso enquanto tenta elaborar a dor de uma perda repentina, coletiva e com poucas chances de cerimônias fúnebres. É muito a enfrentar.
Não estou sugerindo aqui que deixemos de lado os requisitos legais para a regularidade do registro civil de óbito ou para a abertura da sucessão em caso de morte presumida. Mas precisamos, como sociedade, repensar trâmites burocráticos para que eles não se sobreponham à dor da perda de um familiar. As obrigações legais são adjacentes à morte de uma pessoa querida, mas elas não podem ser o centro do processo de luto.
Com frequência, as demandas jurídicas da morte colocam as pessoas como devedoras do Estado, correndo contra o tempo, quando deveriam estar autorizadas a viver e elaborar seus lutos. A morte não é sobre certidão, sobre legislação, sobre inventário. A morte é sobre pessoas.
*Laura Brito é advogada especialista em Direito de Família e das Sucessões, possui doutorado e mestrado pela USP e atua como professora em cursos de Pós-Graduação, além de ser palestrante, pesquisadora e autora de livros e artigos na área.