O pior cego e o processo penal

Por Antônio Sergio Altieri de Moraes Pitombo.

Na África, após a 1ª Guerra Mundial, os colonialistas franceses convidavam personalidades e líderes religiosos para assistirem sessões de cinema. Aceitos, por diplomacia, os convites, os africanos fechavam os olhos ao apagar das luzes, sem abri-los antes do final da exibição. Alguns, de antiga tradição muçulmana, temiam enxergar formas e faces humanas, dada a proibição de cunho religioso.

Esses episódios são narrados por Jean-Claude Carrière, o qual concluiu: “Estavam lá e não estavam. Faziam-se presentes, mas nada viam” (A linguagem secreta do cinema. Trad. Fernando e Benjamin Albagli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 9-11).

O silêncio da comunidade jurídica em relação a procedimentos criminais e decisões judiciais recentes me faz observar a similitude entre os contextos. Nossos professores de direito e processo penal acompanham as notícias sobre os casos criminais atinentes ao 8 de janeiro?

Leitores assíduos de jornais e internet, bem assim espectadores frequentes das sessões de julgamento, suponho que, à cada novidade, tais mestres cerram as pálpebras para não enxergarem o que se passa.

Imagino a dificuldade de dormir quando os escorpiões vêm à mente, na expressão de Macbeth. Afinal, difícil apaziguar a consciência do acadêmico que, em congressos e textos, brada por direitos e garantias individuais, se ele se cala ao saber que defensores devem sucumbir aos documentos, escolhidos pelo acusador público, de modo unilateral.

Penso na provável vertigem de mestres e doutores ao ouvirem que a defesa não tem direito à informação plena quanto a todos os documentos que serviram à investigação criminal, ou que nem mesmo se concede aos advogados prazo razoável para conhecerem o acervo probatório dos autos. Por fim, não preciso de esforço para conjecturar o quanto se omitem tais professores de Direito, ao examinarem temas como a imparcialidade da jurisdição e individualização da pena.

Bons amigos, advogadas e advogados indignados, me dizem que a causa da inação teria caráter ideológico. Afinal, os réus confessam-se de direita, portanto, mereceriam. Outros me falam do clientelismo brasiliense e das relações de favores da academia: melhor garantir uma “fala” num seminário ao lado de ministro, ou um parecer, a ser verdadeiro, ou mostrar independência.

Para fugir dessa série dramática e real que exibe a apatia dos intelectuais do mundo jurídico frente ao arbítrio instalado nas cortes, vou ler, ver filmes. Melhor também me cegar diante do cotidiano a me aborrecer com o lado Macunaíma de parcela da universidade. Mas caio na armadilha do destino.

Na semana passada, dediquei uma noite ao filme franco-italiano A confissão do consagrado diretor Costa Gravas (L’Áveu. 1970, 139 min.). As cenas contam a história do vice-ministro das Relações Exteriores de um país comunista do leste europeu que acaba preso, em 1951, sem nem sequer se instaurar procedimento criminal. Dizem à família que o Partido o quer isolado. Por longo período, sem contato com mulher e filhos, sem defesa, ele sofre múltiplas violências físicas e psicológicas. Nas madrugadas, acordado às pressas, a cada novo interrogatório lhe arrancam o reconhecimento de um fato atípico, para compor suposto mosaico de indícios de crime. Para obter a qualquer custo a confissão, há idas e vindas da cela, interrogatórios agressivos, ameaças a familiares com buscas e apreensões, dentre outros excessos.

As comparações emergem incontroláveis no pensamento. Surgem da memória delações premiadas do passado e do presente. No vaivém das medidas cautelares, entrevê-se o método torturante de incentivar o colaborador a confessar infrações penais, bem como entregar fatos e pessoas.

Após algumas horas, tantas similaridades me apaziguam, a bem da verdade. Todos sabemos, grosso modo, a diferença entre o certo e o errado, o justo e o injusto. A cegueira atual apresenta-se momentânea. Logo, alguém a desvenda.

A sociedade encobre até quando pode a arbitrariedade, porém, aqueles, sensíveis aos direitos individuais, sempre mostram a capacidade de contar a história, por meio da arte, inclusive. Mais um pouco, vou poder ver no cinema o thriller sobre parte de nossos juristas de hoje. Arrisco o título: Nós não estávamos aqui.

*Antônio Sergio Altieri de Moraes Pitombo. Advogado, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Advoga no escritório Moraes Pitombo Advogados

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