Por Arthur Felipe Martins
No mundo digital, a coleta e o tratamento de dados pessoais não é mais uma opção, mas uma consequência inevitável. Cada clique, cada formulário preenchido, cada escolha que você faz através de uma plataforma digital serve como forma de captação das suas preferências, planos e anseios pessoais. A coleta e tratamento de dados é uma realidade tanto por entes privados quanto pelos governos. E, se o dado é coletado e armazenado em algum lugar, naturalmente ele demanda monitoramento e vigilância para que não caia em mãos erradas.
A sociedade da vigilância, impulsionada pela tecnologia, revela que o tratamento desenfreado de dados é uma realidade, o que valida o questionamento quanto aos limites desse tratamento. E o direito, que responde às evoluções da sociedade, naturalmente acaba por incorporar esses questionamentos.
Sendo a Constituição a carta maior de uma nação democrática, é de se esperar que nela estejam ditames claros sobre a proteção dos dados do indivíduo. Quando o assunto é a proteção de dados pessoais, nossa Constituição, em seu artigo 5º, traz diversas garantias ao indivíduo. O mais direto é o direito expresso à proteção dos dados pessoais, inclusive em meios digitais (inciso LXXXIX, incluído através da Emenda Constitucional 115).
Contudo, isso somente é reflexo de outras garantias insculpidas no mesmo artigo, como as proteções à intimidade, vida privada, honra e imagem (inciso X), à comunicação feita entre indivíduos, seja por escrito ou em meio telefônico (inciso XII), ou ao direito do cidadão ter acesso a dados e informações sobre si mesmo em registros públicos e privados (inciso LXXII).
É com base nesses princípios que foi editada a Lei 13.709/2018, a conhecida Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, que estabelece normas que garantem que a coleta, o armazenamento e o tratamento de dados sejam sempre feitos de forma transparente, com prévio conhecimento de seu titular, responsabilizando o responsável pelo tratamento e armazenamento dos dados em caso de violações ou vazamentos.
Contudo, a LGPD não é perfeita em seu texto, deixando lacunas que acabam, atualmente, por serem preenchidas através da interpretação de princípios e normas correlatas. A menção ao conceito da “sociedade da vigilância” feita na introdução deste artigo não foi por acaso. A pessoa que pretende viver em sociedade nos dias de hoje fatalmente acabará compartilhando alguns de seus dados e opções pessoais. É como tentar instalar um aplicativo no seu dispositivo eletrônico: se você não concorda com os “termos e condições”, não conseguirá prosseguir com a instalação.
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em seu livro Sociedade da Transparência de 2015, aborda este fenômeno. Segundo Han, a sociedade da vigilância consiste em um ambiente onde a transparência e a exposição se tornam praticamente obrigatórias, impostas pelo mercado como se fosse uma norma cultural, em detrimento de valores como sigilo, discrição e confidencialidade.
Isso leva a uma espécie de vigilância voluntária, que reduz as barreiras entre o público e o privado. A queda dessas barreiras é promovida pelo próprio agente que abre mão de sua intimidade: cada pessoa se torna “seu próprio objeto de publicidade”, sendo, simultaneamente, agente e vítima de controle social.
Efetivamente, não é difícil identificar esse movimento no mundo: certamente você já se deparou com uma pessoa ostentando um calçado, uma roupa ou fazendo questão de se fotografar na praia. Trata-se de um hábito onde as redes sociais acabam por criar uma sensação de proximidade com seguidores que o indivíduo sequer conhece: a diversidade e o anonimato dão lugar a uma exposição total, que serve aos interesses do poder público e econômico.
No campo penal, a proteção de dados pessoais apresenta peculiaridades e flexões que amoldam-se à situação e contexto. Não raramente, investigações criminais apenas prosseguem porque seguem evidências encontradas em dados pessoais. Entretanto, o acesso a esses dados precisa ser equilibrado com os direitos fundamentais mencionados acima: cite-se, por exemplo, a restrição a interceptações telefônicas, que, nos termos da Lei 9.296/1996, depende de prévia autorização judicial. Ainda que os dados interceptados provém determinado delito ou conduta, o fato é que, se acessados de forma ilícita ou em violação aos princípios de proteção aqui debatidos, estes não poderão ser utilizados como prova.
Nem mesmo o Estado pode ter acesso a dados pessoais sem observar garantias e procedimentos mínimos. Nenhuma prova obtida de forma ilícita pode ser utilizada dentro de um processo judicial: seria possível mencionar até mesmo a Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada, segundo o qual todas as provas decorrentes de prova ilícita são contaminadas pelo mesmo vício.
Se a prova decorre daquilo que o próprio indivíduo publica em redes sociais, entretanto, ousa-se dizer que não houve comprometimento da liberdade individual, mas unicamente coleta de dados oriundos de redes sociais. Consistiria, a nosso ver, em prova lícita, eis que decorrente de fatos tornados públicos pelo próprio indivíduo.
Já as big techs, como Google e Meta, detém vasta quantidade de dados pessoais precisamente catalogados e armazenados. É por isso que leis como a LGPD e a GDPR criam regras para armazenamento, divulgação e até mesmo acesso dessas informações pelo próprio indivíduo; contudo, o fato de que muitas vezes tais empresas encontram-se sediadas em diversos países ao mesmo tempo tem se mostrado como um desafio à regulamentação do assunto pela sociedade mundial.
Indubitavelmente, o direito à proteção de dados é garantia fundamental na sociedade moderna. De nada adiantaria a lei proteger somente correspondências escritas e chamadas telefônicas, quando, em pleno 2024, até mesmo o e-mail vem se mostrando arcaico e preterido pelas novas gerações. Apresenta-se, aqui, a necessidade de evolução tanto do indivíduo quanto do legislador: a este, cabe a constante missão de proteger a sociedade; a aquele, a necessidade de entender que nenhuma proteção será suficiente para quem não cuida bem do que é seu.
*Arthur Felipe Martins é advogado, especialista em direito e processo do trabalho e direito acidentário, mestrando em direito do trabalho pela PUC-SP e professor em cursos jurídicos voltados ao direito do trabalho e correlações com o direito previdenciário.