Por João Carlos Dalmagro Junior, advogado criminalista e Mestrando em Ciências Criminais (PUC/RS)
Fazer a coisa certa no Direito brasileiro é uma empreitada inglória; às vezes, soa mesmo impossível. Lenio Streck publicou um pequeno livro com título sugestivo: O que é fazer a coisa certa no Direito (Dialética, 2023). De largada, ele ilustra o problema que aborda com o clássico dilema do trem.
Você está em um trem e, se continuar nos mesmos trilhos, matará cinco pessoas. Se puxar uma alavanca matará uma única pessoa, que está em pé, no desvio. Esse exemplo é usado para ilustrar as posturas utilitaristas diante da questão que surge: a morte de uma pessoa seria preferível à morte de cinco?
A resposta parece mais difícil à medida em que surge a necessidade concreta de que alguém de fato puxe a alavanca e desvie o trem para matar uma pessoa e salvar cinco. A pergunta é agora outra, muito mais complexa: quanto vale uma vida?
Streck procura mostrar que esse não é um dilema que se coloca para um jurista (e para o Direito), já que não há propriamente escolha entre decidir por consequências e por princípios: “O direito tem de poder mais do que isso. O direito tem de chegar antes.”
A integridade do Direito exige que suas decisões sejam pautadas justamente pelo…Direito – de forma coerente e estável – e rechaça a possibilidade de que a racionalidade jurídica seja substituída por racionalidades instrumentais, carregadas de opiniões políticas e juízos morais.
Os últimos embates entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal sobre o foro por prerrogativa de função de parlamentares federais demonstram, contudo, que esse ideal está longe de ser alcançado.
De acordo com a Constituição, Deputados Federais e Senadores são investigados e processados, por crimes comuns, perante o Supremo Tribunal Federal. Historicamente, essa prerrogativa sempre foi vista como uma espécie de privilégio, o que levou à utilização do termo, um tanto pejorativo, foro privilegiado. Esse privilégio, de acordo senso comum, levaria à impunidade. Ser julgado pelo Supremo era o desejo de todo acusado.
Os ventos mudaram com a Ação Penal 470 – o famigerado processo do Mensalão. As condenações foram duras. A tramitação processual foi relativamente rápida. Não havia outros graus de jurisdição. Os condenados não podiam rediscutir as sentenças perante outro Tribunal. Políticos e empresários foram presos e cumpriram pena.
Em 2018, na Ação Penal (AP) 937, o STF analisou o alcance da sua competência para processar e julgar parlamentares federais, nos termos da Constituição Federal de 1988. Nessa oportunidade, a Corte decidiu que o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.
De todo modo, agora, o STF dá sinais de que possivelmente reanalisará a questão – para ampliar o foro por prerrogativa de função.
Em um caso enviado ao Plenário pelo ministro Gilmar Mendes (relator), já há cinco votos para alterar o atual entendimento e decidir que, quando se tratar de crime praticado no exercício da função, o foro privilegiado deve ser mantido mesmo após a autoridade deixar o cargo. Por enquanto, os ministros Cristiano Zanin, Flávio Dino, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli acompanharam o relator (Mendes). Luís Roberto Barroso pediu para a votação ser interrompida mas já devolveu o caso ao Plenário Virtual, em que os ministros apresentam os votos sem debatê-los com seus pares. A expectativa é que o julgamento seja retomado no dia 12 e seja concluído até o dia 19 de abril.
Na outra trincheira está o Congresso Nacional.
No Parlamento tramita, desde 2013, uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que mantém o foro privilegiado apenas para os presidentes da República, da Câmara, do Senado e do STF. Na prática, em relação a investigações e ações penais, em trâmite no STF, contra Deputados, Senadores e demais autoridades, a aprovação da PEC acarretaria o envio dos processos à primeira instância.
Paralisada desde 2018 na Câmara, a PEC ganhou novo fôlego no Congresso nas últimas semanas, justo depois que o STF iniciou o julgamento do processo que pode ampliar o alcance do foro por prerrogativa de função mesmo às autoridades que tenham deixado o cargo público.
A retomada da PEC é um movimento de autopreservação de parlamentares que se veem às voltas com investigações criminais no Supremo Tribunal Federal, muitas delas presididas pelo ministro Alexandre de Moraes, cuja postura tem sido dura e muitas vezes inflexível em relação aos acusados.
Se é certo que o debate não é meramente técnico-jurídico e reacende uma discussão sobre a capacidade institucional do judiciário brasileiro, perpassando temas caros à sociedade como igualdade e justiça, é necessário tomar cuidado para que a discussão, transversal por natureza, não ceda a instrumentalismos voluntaristas e a um dos “inimigos ocultos do Direito”, como escreve Lenio Streck: o jogo do poder. Nesse tabuleiro, de contornos belicosos, quem perde é o Direito.