Discurso de ódio nas Redes Sociais: a tenuidade entre a liberdade de expressão e a lesão aos direitos LGBTQIA+
É inegável que pouco a pouco, sem que eu ou você percebêssemos, a internet tomou conta das nossas vidas. Entretanto, os seres humanos são dotados de culturas, princípios e ideais que divergem entre si e, consequentemente, também se manifestam dentro da vida virtual onde a sua propagação percorre diversos lugares de forma incontrolável em um lapso de tempo muito curto, ocasionando conflitos sociais que no passado só existiam no mundo físico.
Liliane Bezerra, membro do Serur Advogados
É inegável que pouco a pouco, sem que eu ou você percebêssemos, a internet tomou conta das nossas vidas. Entretanto, os seres humanos são dotados de culturas, princípios e ideais que divergem entre si e, consequentemente, também se manifestam dentro da vida virtual onde a sua propagação percorre diversos lugares de forma incontrolável em um lapso de tempo muito curto, ocasionando conflitos sociais que no passado só existiam no mundo físico.
Ou seja, o meio ambiente virtual é desenhado para promover a liberdade de expressão, mas não possui filtro quanto ao limite do exercício desse direito. Isto porque, a sensação de anonimato ao utilizar um perfil numa rede social, por exemplo, é recorrente para aqueles que insistem em utilizar a ferramenta como “terra sem lei”.
Atualmente, a internet é um dos veículos de maior alcance da propagação de notícias e informações, de forma facilitada, onde o uso da liberdade de expressão é deveras favorável, ou seja, é um ciberespaço que proporciona um ambiente democraticamente amplo, para que seus usuários possam falar sobre seus ideais, opiniões e convicções. Dessa forma, difunde ideais de usuários pertencentes a diversos lugares do mundo, dentro de um espaço virtual que os encoraja a expressarem absolutamente qualquer pensamento.
A liberdade e a anonimização criadas pelo design do ciberespaço ocasionaram a instauração de um conflito social virtual que impactou na transformação do uso e modo de percepção das redes sociais. Elas passaram a ser vistas como um lugar onde os usuários transitam sem o menor receio de discursos de intolerância, preconceitos e de discriminação que inferiorizam ou impulsionam atos de violência.
Nesta perspectiva, é interessante pensar que o direito à liberdade de expressão, concedido constitucionalmente, passou a ser praticado de forma ofensiva, se não abusiva, lesionando outros direitos fundamentais constitucionalmente tutelados, como o da dignidade da pessoa humana. A ultrapassagem do limite da liberdade de expressão é o que ficou conhecido por discurso do ódio. E quando praticado na internet, além de ferir um princípio fundamental dos direitos humanos, também incita o ódio e a hostilização de um indivíduo motivado por um preconceito, seja por sua cor, raça, etnia, gênero ou orientação sexual.
Uma das maiores garantias concedida ao ser humano, depois do direito à vida, é a liberdade. Sem ela, não há como falar em dignidade da pessoa humana e sem o seu respaldo muitos direitos perdem o significado de sua existência. No entanto, a liberdade de expressão não é um direito absoluto, e, portanto, quando seu exercício ferir direitos constitucionais consagrados a outrem, deve se dar adequada limitação e correspondente sanção.
À luz do conhecimento referente às nuances que concretizam o discurso e, consequentemente, o discurso de ódio mundialmente, ficou claro que a liberdade de expressão confronta direitos fundamentais, criando-se uma linha moral tênue, ocasionando conflitos sociais de ideais entre os indivíduos que compõem a sociedade, especialmente as pessoas que integram o movimento LGBTQIA+.
Apesar de não haver uma definição autoral, a comunidade LGBTQIA+ foi desenvolvendo seu próprio conceito, concretizando-se como um movimento político e social que busca representatividade de indivíduos que não se identificam com os normas binárias de gênero e sexo, que, ao longo dos anos foram excluídos e marginalizados socialmente.
A luta constante deste movimento é em prol de igualdade de direitos, respeito e reconhecimento à diversidade que os definem como ser humano. Nesse sentido, as siglas não se limitam, o intuito do movimento é incluir cada vez mais pessoas para que se sintam representadas e que suas pautas sejam defendidas em sociedade.
O Projeto de Lei 2630/20, conhecido como Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, traz em seu texto medidas criadas para combater a disseminação de conteúdo falso nas redes sociais. Medidas essas válidas em qualquer plataforma digital que contenha mais de 2 milhões de usuários, brasileiros ou estrangeiros, desde que os serviços sejam oferecidos à população brasileira.
É perceptível que, atualmente, a vida virtual vem se transformando em diversos aspectos, dentre esses, as relações entre os indivíduos e a forma com que se relacionam. Na realidade, as pessoas na maioria das vezes situam-se em uma posição de valorização do seu individualismo e encontram na internet uma ferramenta de externalização de pensamento e ideologias. A problemática ocorre quando tais manifestações são de teor discriminatório ou preconceituoso, utilizando a defesa de estarem exercendo pleno direito à expressão de liberdade.
Fica evidente que o discurso de ódio é uma ferramenta de concretização e perpetuação da homofobia, aqui não se limitando somente a gays e lésbicas, mas a todos os grupos que integram a comunidade LGBTQIA+, aumentando o afastamento social pré-existente que historicamente marginaliza e ameaça as pessoas LGBTQIA+, o que ocasiona crimes de ódio.
A polarização social, que decorre também de ideais políticos, intensifica a prática do discurso de ódio na internet devido à forma com que a maior parcela da sociedade passa a enxergar a discriminação e o preconceito contra minorias como algo natural. A naturalização de manifestações desse tipo perpetua a segregação das diversidades existentes em uma sociedade.
Logo, a luta diária dessa classe, em tentar conscientizar a população, torna a sua resistência progressivamente mais forte, ao passo que, embora haja estatísticas escassas, essas demonstram números alarmantes de óbitos resultantes da violência destinada a essa comunidade.
Ainda há um longo caminho a ser percorrido pelo Brasil para consolidar a responsabilização pelo discurso de ódio, e consequentemente criar legislações concretas e específicas que tipifiquem os casos decorrentes dessa manifestação que fere direitos constitucionais. Nesse sentido, a tenuidade entre a liberdade de expressão e o discurso de ódio torna-se frágil, e os limites, quando ultrapassados, lesam direitos constitucionais.