Contra tudo e contra (quase) todos: apesar de proibição legal, mineradora em Goiás continua lucrando com exportação de amianto no Brasil
Proibida em mais de 60 países, a fibra cancerígena foi banida pelo STF há sete anos, mas segue sendo explorada graças a manobras legislativas. Com uma única empresa instalada, Brasil ainda é o terceiro maior exportador de amianto no mundo
Os deputados estaduais de Goiás aprovaram uma nova lei adiando para 2029 o prazo para encerramento das atividades de extração de amianto. Não é a primeira vez em que a indústria de amianto ganha uma nova chance no Planalto Central: a norma de âmbito estadual recicla outra manobra da política goiana que, desde 2019, dá respaldo ao descumprimento da decisão histórica do Supremo Tribunal Federal (STF), que já baniu a exploração de todos os tipos de amianto no Brasil há mais de sete anos. De lá para cá, movimentos sociais, especialistas e entidades unidos contra a fibra cancerígena travam uma briga judicial para provar a inconstitucionalidade da lei estadual que deu brecha para que o amianto continuasse sendo explorado.
O solo goiano abriga a mina Cana Brava, a única área de extração de amianto em operação em todo continente americano. Sob comando da SAMA Minerações, de Minaçu, no norte do estado, partem toneladas da fibra natural cuja proibição é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 2006. Embora a lei de Goiás permita apenas a exportação, a extração do amianto em solo brasileiro ativa uma cadeia de distribuição que expõe milhares de pessoas ao risco, desde os trabalhadores da mineradora, logística de transporte terrestre até os portos que despacham a matéria-prima para o resto do mundo, principalmente Ásia. Apesar de escasso em informações, o site da empresa exibe resultados econômicos expressivos: a SAMA concentra 15% do mercado global de amianto crisotila, minério responsável pelo adoecimento e morte de cerca de 100 mil pessoas por ano em todo mundo.
Depois de mais de 30 anos de articulação entre especialistas e organizações que alertam para os riscos que a exploração do amianto impõe à saúde, em 2017 o STF aprovou o banimento completo do produto no país. Mas a lei se mostrou ineficaz: em 2019 a Assembleia Legislativa de Goiás (Alego) burlou a ordem federal e aprovou a lei estadual Lei nº 20.514, de autoria do Deputado Rubens Marques (União Brasil), para liberar a exportação “enquanto houver capacidade de extração de lavra ou disponibilidade do minério”. Uma ação de inconstitucionalidade tramita até hoje no STF, que deveria ter apreciado a matéria no último 14 de agosto, mas a suprema corte retirou o item da pauta sem nenhuma explicação. No dia seguinte, a Alego aprovou uma lei protocolada no mesmo dia pelo próprio governo do estado: a lei 22.932 estabelece o generoso prazo de cinco anos para o fim da exploração da fibra em Goiás e, consequentemente, no Brasil. Ambas as leis estaduais foram sancionadas pelo governador Ronaldo Caiado, do União Brasil. O processo ADI 6200 deveria ingressar novamente na pauta do STF em outubro, para discutir a suspensão imediata da atividade econômica, mas foi novamente destacado em 22 de outubro de 2024, ocasião em que o governador Caiado se reuniu com o relator do processo, o ministro Alexandre de Moraes. O fechamento da mina em Minaçu foi o tema da reunião de despacho, segundo vídeopublicado pelo próprio governador goiano em seu perfil pessoal em uma rede social.
A justificativa que ampara essas decisões políticas é o impacto socioeconômico do fim das atividades mineradoras na cidade de Minaçu, que, segundo a Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea) mantém cerca de 300 postos de trabalho na região de 30 mil habitantes. “A identidade local está muito ligada à instalação da empresa que está ali há décadas, oferecendo emprego, mas também obras de infraestrutura que são reconhecidas pela população, que acaba defendendo a permanência da exploração mineral”, avalia a engenheira civil e fundadora da Abrea, Fernanda Giannasi.
Giannasi lembra que outra mina de amianto foi desativada na Bahia em 1967, quando passou-se a explorar o norte de Goiás. A extração em solo baiano foi encerrada por esgotamento da lavra, que já era bastante profunda, e não por imposição de leis restritivas. “Na Bahia existe essa experiência, que é muito difícil. Não houve planejamento socioeconômico para interrupção das atividades, gerando um imenso passivo socioambiental aos baianos. Até hoje estamos atuando com rastreamento da saúde da população, que continua exposta”, relata Giannasi.
Fim programado
A lei mais recente aprovada em Goiás estabelece o encerramento da extração em Minaçu até 2029 e determina que “a empresa concessionária de lavra” apresente em um prazo de 90 dias o “plano estratégico de fechamento de mina para minimizar os impactos econômicos, sociais e ambientais decorrentes do encerramento das atividades de mineração”. O documento ainda menciona que “os recursos necessários à implementação de todas as etapas do plano de encerramento das atividades da mina correrão por conta do fundo financeiro” determinado no decreto da lei de 2019. Esse decreto não menciona o valor que seria aportado pelo estado para suprimento das despesas, mas antecipa que “caso o fundo financeiro alcance valores superiores aos gastos totais para o fechamento da mina, a diferença será incorporada ao patrimônio da concessionária”.
A reportagem procurou a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD) de Goiás para confirmar se a SAMA Minerações já apresentou o Plano Estratégico de encerramento das atividades e explicar de que maneira o governo do estado vai definir o fundo para cobrir as despesas com a paralisação das atividades, conforme determina a lei estadual. A assessoria de imprensa não soube prestar essas informações e alegou que apenas um técnico de licenciamento tem domínio sobre o processo e que esse profissional estaria incomunicável, em trabalho de campo. Segundo a assessoria de imprensa da SEMAD, seriam necessários alguns dias para prestar as informações solicitadas.
Quem atua pelo banimento da fibra realça o questionamento sobre os termos em que se dará o fim das atividades de extração do amianto em Goiás. “Não tá claro pra gente como vai ser essa paralisação. Qual é o material estocado? Como vai ser o descomissionamento da área? Quantos anos vai levar? Quanto investimento?”, indaga a fundadora da entidade. “É de uma complexidade tamanha… pra realizar tudo aquilo vai levar décadas. E quem vai pagar isso? É o estado de Goiás? Quais são os acertos, os ajustes? A empresa vai ter um plano financeiro para arcar com isso? Quem promoveu a degradação foram eles! Ou essa lei foi só uma justificativa para ganhar mais cinco anos”, problematiza a fundadora da Abrea.
Risco camuflado
Na contramão das manobras do legislativo goiano, em 2023 o deputado federal Nilto Tatto (PT-SP), propôs ao Congresso Federal um projeto de lei que versa sobre o processo de “desamiantagem” e “dispõe sobre as atividades ou operações de manutenção, demolição, remoção, transporte de resíduos e destinação final de materiais ou produtos contendo amianto”. A intenção era avançar para além do banimento absoluto do minério substituindo instalações antigas que contivessem a fibra. “São dois debates: um, de como a legislação põe fim à exploração e outro, de como retira o amianto que já está no ambiente. É uma tarefa ainda mais difícil que proibir”, comenta o parlamentar.
Desde que foi protocolado em Brasília, o projeto permanece parado na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, atualmente presidida pelo deputado Rafael Prudente (MDB-DF). “É uma tática: deixar tudo parado”, analisa Tatto. “Temos uma dificuldade muito grande quando trata desses temas e isso tem a ver com a própria composição do Congresso. A gente não consegue que o presidente designe um relator adequado. Pode até designar alguém do centrão que se articula fortemente com lobby da mineração. Tudo que mexe com interesses relacionados com a mineração é difícil”, explica. “Eles não deixam os projetos passarem e ainda propõem outros para atrapalhar”.
Na perspectiva do deputado Nilto Tatto (PT-SP), as políticas públicas devem ser pensadas de forma a incluir as mineradoras na responsabilização e compensação pelos danos causados ao meio ambiente e à saúde pública ao longo de décadas de rentabilidade que foi conquistada a partir da extração de um recurso coletivo. “A responsabilidade socioambiental dos empreendimentos é um debate que a gente vem fazendo. Se se chegou à conclusão de que a empresa pode operar, ela também tem que prever de arcar com as consequências. Recursos do subsolo são propriedade da União, do povo brasileiro. É concessão. Se o empreendedor ganhou dinheiro com aquilo, não pode ficar eximido dos impactos”, argumenta.
Vexame na vitrine global
Fernanda Giannasi corrobora com a análise do parlamentar e classifica a ação exportadora do produto ameaçador à saúde como uma espécie de racismo ambiental praticado com países como a Índia. “O Brasil barra no problema do próprio Supremo, que acaba se comportando de uma maneira vexatória diante do resto do mundo. “o que não pode aqui exporta para os demais”, sentencia. Além do problema de transferência da contaminação, Giannasi alerta para a vantagem comercial que a SAMA Minerações obteve diante da guerra da Ucrânia, suprindo o fornecimento para a Índia. “O Brasil e outros grandes concorrentes globais, como Cazaquistão, Rússia e China – onde a resistência social é frágil e praticamente nula – acabaram se valendo do banimento no resto do mundo e, no caso do Brasil, até da guerra, para se beneficiar comercialmente”.
Carga perigosa
Os riscos da exploração do amianto são conhecidos desde a década de 1950. Os graves prejuízos à saúde humana – principalmente dos trabalhadores das minas – resultaram no banimento do amianto na maior parte do mundo. Estima-se que 125 milhões de pessoas permaneçam expostas às partículas que são aspiradas e causam diversas doenças respiratórias e variados tipos de câncer. A exploração do mineral também traz graves prejuízos à natureza, com resíduos que contaminam solo, água e ar.
Decisão americana deve impulsionar a luta no Brasil
Os Estados Unidos anunciaram no dia 18 de março a proibição do último tipo de amianto ainda utilizado por algumas indústrias do país. Isso ocorre meio século depois de o governo norte-americano iniciar a luta contra a utilização desse mineral altamente cancerígeno. Acredita-se que esse fator deve impulsionar a discussão do tema de maneira resolutiva no Brasil.
O documentário “Não Respire – Contém Amianto” investiga como a indústria do produto trabalha para vender a imagem de que o tipo de amianto usado no bilionário mercado brasileiro de telhas, chamado de “crisotila”, não é tão ruim assim. Ele pode ser visto aqui a título de conhecimento: https://reporterbrasil.org.br/documentarios/naorespire/
Confira também a publicação do Ministério da Saúde e do INCA (Instituto Nacional do Câncer): Amianto, câncer e outras doenças: você conhece os riscos?
Artigo escrito por Ester Athanásio, jornalista, mestre em comunicação e doutoranda em políticas públicas pela Universidade Federal do Paraná, especialista em comunicação de causas socioambientais, para o projeto – #foraamianto – que atua pelo banimento da fibra no Brasil, liderado pela jornalista Elaine Bento, especialista em marketing estratégico, mídias digitais e neurociências e comportamento humano.