Ato cooperativo ou operação de crédito? Análise funcional da natureza dos contratos de cooperativas na recuperação judicial à luz das CPRs financeiras e da jurisprudência do STJ

Por Suzimaria Maria de Souza Artuzi*

1. INTRODUÇÃO

A atuação de cooperativas em operações financeiras tem sido objeto de crescente atenção no contexto da recuperação judicial. A discussão se intensifica quando tais entidades, sob o manto de atos cooperativos, emitem Cédulas de Produto Rural (CPR) com liquidação exclusivamente financeira ou Cédulas de Crédito Bancário (CCB) com estrutura tipicamente bancária.

O problema central reside na qualificação da natureza do crédito: se decorrente de um ato cooperativo protegido pela Lei nº 5.764/1971, imune aos efeitos da recuperação judicial, ou se trata de operação de crédito comum, sujeita ao processo concursal conforme a Lei nº 11.101/2005.

Este artigo propõe uma abordagem funcional, baseada na jurisprudência recente do STJ, critérios objetivos e doutrina especializada, a fim de fornecer parâmetros seguros para administradores judiciais, magistrados e operadores do Direito.

2. O CONCEITO DE ATO COOPERATIVO E SUA PROTEÇÃO LEGAL

Nos termos do art. 79 da Lei nº 5.764/1971:

“Denomina-se ato cooperativo o praticado entre cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas, quando realizado dentro dos objetivos sociais.”

Historicamente, esse dispositivo foi interpretado de forma protetiva, blindando os atos cooperativos dos efeitos da falência e da recuperação judicial. A jurisprudência anterior reconhecia o caráter não empresarial da atividade cooperativa, sob o argumento de que os atos ali praticados não tinham finalidade lucrativa e não envolviam risco típico do mercado.

A doutrina clássica, como Rubens Requião e Fábio Ulhoa Coelho, sustenta que o ato cooperativo deve ser compreendido como aquele que atende a finalidade mutualista da cooperativa, em benefício direto de seus associados, sendo instrumento de interesse coletivo e não de intermediação financeira.

Contudo, com a modernização das operações e a ampliação da atuação das cooperativas no mercado de crédito, torna-se necessário distinguir os atos essencialmente cooperativos daqueles que, embora praticados por cooperativas, assumem natureza eminentemente contratual e financeira.

3. CPR FINANCEIRA, CCB E A NATUREZA CONTRATUAL DO CRÉDITO

A CPR com liquidação exclusivamente financeira (CPR-F) tem sido amplamente utilizada como instrumento de crédito rural. Diferentemente da CPR física (com entrega de produto), a CPR-F obriga o devedor ao pagamento em dinheiro, geralmente com cláusulas de correção monetária, juros, vencimento antecipado e outras características típicas de contratos bancários.

Da mesma forma, a CCB emitida por cooperativas ou bancos cooperativos muitas vezes não guarda relação com a atividade mutualista. Trata-se de instrumento padronizado do sistema financeiro nacional, utilizado para operações de crédito, com estrutura semelhante às operações bancárias tradicionais.

Quando essas cártulas são utilizadas sem vínculo com atividade cooperativa típica (armazenagem, beneficiamento, fornecimento de insumos, transporte etc.), sua natureza deixa de ser cooperativa e passa a ser contratual e empresarial, integrando a massa concursal.

4. O DESVIO DA FUNÇÃO MUTUALISTA NAS OPERAÇÕES DE COOPERATIVAS

As cooperativas, em especial aquelas que atuam como bancos cooperativos, frequentemente realizam operações que se afastam de sua finalidade estatutária. Esse desvio da função mutualista caracteriza-se por:

Concessão de crédito a terceiros não cooperados;
Estabelecimento de relação meramente financeira, com ausência de prestação de serviço cooperativo;
Emissão de títulos com cláusulas bancárias (juros, garantias, vencimento antecipado etc.);
Atuação com caráter de intermediação financeira no mercado, com objetivo de lucro.

Tais características descaracterizam o ato cooperativo autêntico, retirando a blindagem legal e tornando o crédito sujeito à recuperação judicial.

Como ensina Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa:

“A caracterização do ato cooperativo não se faz apenas pela forma do contrato ou pelo nome da entidade envolvida, mas pela função econômica da operação e sua vinculação aos princípios da cooperação.” (Direito Societário e Cooperativo, 2020)

5. JURISPRUDÊNCIA DO STJ: ATO COOPERATIVO VS. OPERAÇÃO FINANCEIRA

O Superior Tribunal de Justiça, nos últimos dois anos, tem consolidado entendimento de que a essência econômica da operação prevalece sobre sua roupagem formal. Isso é especialmente verdadeiro nos casos de CPRs com liquidação financeira.

REsp 2.091.441/SP

Relator: Min. Marco Aurélio Bellizze

Julgamento: 10/10/2023

“A emissão de CPR com cláusula de liquidação exclusivamente financeira, desvinculada de obrigação de entrega física do produto rural, não configura ato cooperativo. Trata-se de contrato de financiamento puro, cujo inadimplemento enseja crédito concursal, sujeito à recuperação judicial.”

REsp 2.113.861/MS

Relator: Min. Raul Araújo

Julgamento: 23/04/2024

“A CPR financeira, mesmo firmada com cooperativa, é operação de crédito bancário quando não envolve obrigação de entrega física de produto. O crédito é concursal e deve ser habilitado no processo de recuperação.”

Esses precedentes refletem a mudança do STJ rumo a uma interpretação funcional e econômica, alinhada à doutrina moderna e à realidade do mercado.

6. CRITÉRIOS FUNCIONAIS PARA QUALIFICAÇÃO DO CRÉDITO NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

A seguir, apresentam-se critérios práticos que auxiliam a qualificação do crédito como concursal ou extraconcursal, com base na função da operação:

O crédito é CONCURSAL quando:

Há liquidação exclusivamente financeira (sem entrega de produto);
O contrato prevê juros, multa, vencimento antecipado e garantias reais;
A relação envolve terceiros não cooperados;
Não há prestação de serviço estatutário ou mutualista;
A cooperativa atua como financiadora típica, com foco no retorno financeiro.

O crédito pode ser EXTRACONCURSAL quando:

Há entrega física do produto agrícola;
O contrato está vinculado a atividade-fim da cooperativa (beneficiamento, armazenagem, transporte);
O serviço foi prestado exclusivamente a cooperado;
A operação se dá sem objetivo de lucro ou remuneração financeira direta.

Esses critérios, aplicados casuisticamente, permitem ao administrador judicial e ao juízo estabelecer a correta qualificação da natureza do crédito, com segurança jurídica e equilíbrio entre as partes.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A crescente utilização de instrumentos como a CPR com liquidação exclusivamente financeira e a Cédula de Crédito Bancário (CCB) por cooperativas tem provocado a necessidade de revisitar os contornos do ato cooperativo, especialmente no âmbito da recuperação judicial.

A jurisprudência atual do Superior Tribunal de Justiça já consolidou a importância de uma análise funcional da operação jurídica, a fim de distinguir aquelas que mantêm essência mutualista daquelas que, embora formalmente associativas, possuem caráter financeiro típico, com todos os elementos de um contrato bancário.

Esse movimento reforça a necessidade de atuação técnica, criteriosa e coerente por parte dos operadores do direito, sobretudo administrações judiciais e juízos recuperacionais, que devem avaliar cada relação jurídica não apenas por sua forma, mas também por sua substância econômica e finalidade real.

Ao longo deste artigo, foram sistematizados fundamentos normativos, elementos contratuais e critérios objetivos que possibilitam maior segurança jurídica na análise de créditos oriundos de cooperativas. Embora a terminologia “ato cooperativo” ainda desperte presunções de imunidade legal, a realidade dos contratos mostra que a natureza da obrigação deve prevalecer sobre sua roupagem formal.

Em um cenário onde a atuação das cooperativas se moderniza e se complexifica, a leitura jurídica deve acompanhar essa evolução, garantindo equilíbrio entre os princípios da cooperação e os direitos dos demais credores submetidos ao regime concursal.

REFERÊNCIAS

Lei nº 11.101/2005 – Lei de Recuperação Judicial e Falências
Lei nº 5.764/1971 – Lei das Cooperativas
Fábio Ulhoa Coelho – Curso de Direito Comercial, Saraiva, 2022
Rubens Requião – Curso de Direito Comercial, 27ª ed., Saraiva
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa – Direito Societário e Cooperativo, Malheiros, 2020
José Luiz Gavião de Almeida – Revista de Direito Empresarial, vol. 48, 2023
REsp 2.091.441/SP – Min. Marco Aurélio Bellizze – STJ – 10/10/2023
REsp 2.113.861/MS – Min. Raul Araújo – STJ – 23/04/2024

Suzimaria Maria de Souza Artuzi

Administradora Judicial | Advogada | Especialista em Direito Empresarial

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