Por Rafael S. G. Schlickmann
O Código Civil brasileiro, em vigor desde 2002, nunca passou por uma reforma ampla. A sua implementação representou um marco para o Direito brasileiro, substituindo o antigo código de 1916 e trazendo uma visão mais moderna e alinhada às demandas da sociedade do final do século XX. Contudo, passados mais de 20 anos, o ordenamento jurídico precisa acompanhar as mudanças sociais, econômicas e tecnológicas que estão ocorrendo.
A proposta de reforma do Código Civil, que deve ser amplamente debatida no Congresso Nacional nos próximos meses, pode trazer um volume significativo de mudanças, com 242 novos artigos propostos e alterações em outros 840. A modernização abrange diversas áreas, incluindo Direito de Família, Sucessões e Direito Digital, refletindo as transformações sociais e tecnológicas dos últimos anos. Trata-se de uma oportunidade única de revisitar institutos jurídicos e adaptá-los às novas realidades, embora também demande cautela para evitar lacunas ou conflitos na sua aplicação.
No campo do Direito de Família, a proposta sugere inovações como a positivação da união homoafetiva, reconhecida pelo STF em 2011, eliminando as menções a “homem e mulher” para definir casais ou famílias, indo na contramão de políticas recentes em países como os Estados Unidos, onde decisões judiciais e legislativas têm buscado limitar direitos conquistados por casais homoafetivos. Também é proposta a substituição de termos tradicionais como “entidade familiar” por “família” e “poder familiar” por “autoridade parental”. Outro destaque é o reconhecimento da multiparentalidade, permitindo a coexistência de vínculos paternos ou maternos em relação à mesma pessoa.
A proposta também avança no reconhecimento da socioafetividade, onde laços baseados no afeto têm o mesmo valor jurídico que os vínculos biológicos ou legais. Além disso, prevê o registro imediato da paternidade com base na declaração da mãe, em caso de recusa do pai ao exame de DNA. Isso representa um avanço significativo na proteção dos direitos das crianças.
Em relação aos alimentos compensatórios, as alterações trazem maior clareza ao estabelecer que, em casos de divórcio, esse tipo de pensão deve considerar a diferença patrimonial entre os cônjuges após o término da relação. O objetivo é assegurar o mínimo existencial e preservar a dignidade da pessoa humana, algo que há muito é defendido pela doutrina e jurisprudência.
Outra novidade significativa é a possibilidade de divórcio ou dissolução de união estável sem a necessidade de ação judicial, bem como a permissão para alterar o regime de bens do casamento ou da união estável diretamente em cartório, eliminando a burocracia atualmente existente.
Já no Direito das Sucessões, a regulamentação da herança digital é um dos pontos mais inovadores. A proposta inclui bens digitais — como criptomoedas, arquivos eletrônicos e contas de redes sociais — no espólio, permitindo a transmissão aos herdeiros conforme as disposições testamentárias ou a ordem de sucessão legal. Essa previsão busca preencher uma lacuna importante no atual cenário tecnológico, alinhando-se às diretrizes da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Outro ponto controverso é a exclusão do cônjuge como herdeiro necessário quando houver descendentes ou ascendentes, rompendo com uma tradição do Direito Civil. Essa mudança tem gerado intensos debates, principalmente pela sua repercussão no planejamento patrimonial e familiar.
Impactos nos Regimes de Bens para Pessoas com 70 Anos ou Mais
Uma das mudanças mais significativas é a possibilidade de revisão dos regimes de bens para casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoas com 70 anos ou mais. Atualmente, o regime de separação obrigatória de bens é previsto no artigo 1.641, inciso II, do Código Civil. A proposta de reforma insere exceções que permitem maior liberdade para pactuar regimes de bens, considerando o consentimento das partes e a presença de instrumentos jurídicos de proteção patrimonial.
Direito Digital
Com mais de 80 artigos dedicados ao Direito Digital, a proposta de reforma busca criar um marco jurídico sólido para o ambiente online, regulando contratos digitais, sucessão de ativos digitais e o uso de criptomoedas. Os contratos digitais passam a ter diretrizes específicas para garantir sua validade, segurança e autenticidade, com previsão de regulamentação sobre assinaturas eletrônicas, armazenamento em blockchain e a utilização de plataformas digitais para a formalização de negócios jurídicos.
No que tange às criptomoedas, a proposta busca integrá-las de forma mais estruturada ao sistema jurídico, considerando-as como bens digitais que integram o patrimônio de uma pessoa. Isso inclui a definição de regras para a transmissão de criptomoedas em casos de herança, assegurando sua inclusão no espólio e estabelecendo procedimentos para o acesso a carteiras digitais por parte dos herdeiros, sempre em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Além disso, a reforma prevê maior clareza sobre a sucessão de senhas e dados armazenados em plataformas digitais, assegurando aos herdeiros o direito de acessar contas e arquivos em situações específicas. Tais disposições representam um avanço significativo, pois preenchem uma lacuna jurídica existente e oferecem maior segurança para titulares e herdeiros de ativos digitais.
Impactos e Perspectivas
A reforma do Código Civil pode ser um marco que promete trazer modernização e avanços importantes para o ordenamento jurídico brasileiro. Contudo, também suscita desafios para advogados, empresas e cidadãos, que precisarão adaptar-se às novas disposições.
No campo prático, essas mudanças demandarão revisões em contratos, planejamentos patrimoniais e procedimentos administrativos. O fortalecimento de conceitos como multiparentalidade, herança digital e autorização de divórcios extrajudiciais reflete um progresso alinhado às demandas da sociedade contemporânea.
Vejo essa reforma como uma oportunidade de avanço substancial para o ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, ela também carrega desafios que exigem um olhar atento e debates profundos. A sociedade brasileira atravessa um momento em que modernizar as leis é essencial, mas isso deve ocorrer sem abrir mão da segurança jurídica ou da preservação de direitos consolidados. O Congresso Nacional terá um papel determinante para equilibrar as demandas sociais e os interesses individuais, garantindo que as inovações não se tornem fontes de novos conflitos.
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Rafael S. G. Schlickmann é sócio do b/luz e líder dos departamentos de Contencioso & Arbitragem, Família & Sucessões e Imobiliário. Com 20 anos de experiência no contencioso cível, atua na defesa de clientes de diversos segmentos, incluindo tecnologia, e-commerce, fintechs, mídia, varejo e aviação. Em Direito de Família e Sucessões, auxilia em inventários, divórcios, partilhas e adoções, entre outros. No setor imobiliário, coordena operações de compra e venda de imóveis, locações e projetos de expansão. É formado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com especialização em Direito Processual Civil pela PUC-SP.