Por Camila Somadossi e Ligia Cardoso Valente
A Recuperação Judicial, por princípio da Lei que a rege, visa a reestruturação da empresa em dificuldade econômico-financeira, permitindo que esta renegocie as dívidas acumuladas no momento de crise, recuperando as atividades empresariais, bem como mantendo os postos de trabalho e o recolhimento dos impostos.
Para que esta reestruturação seja possível, após a análise de profissionais especializados, um plano de recuperação judicial será apresentado pela recuperanda, onde estará disposta a forma viável encontrada para o pagamento dos credores, evitando-se a falência.
Contudo, a Lei de Recuperação Judicial, por vezes, apresenta entraves aos modos que a recuperanda encontra para a sua reestruturação, sendo que algumas dessas barreiras, após as alterações apresentadas pela Lei nº 14.112/2020 foram superadas.
Destaca-se dessa reforma legislativa a possibilidade da extensão do prazo para pagamento dos créditos trabalhistas, que antes se entendia pela necessária quitação em 12 meses, para mais dois anos, totalizando um prazo final de até três anos.
Para que essa extensão seja autorizada, é necessário que sejam cumpridos os requisitos legais, cumulativamente, quais sejam: (i) apresentação de garantias que o juiz entenda serem suficientes; (ii) aprovação da maioria simples dos credores trabalhistas presentes; e (iii) garantia da integralidade dos créditos trabalhistas.
A extensão do prazo para pagamento, contudo, desautoriza a aplicação de deságio, omitindo-se a Lei com relação à incidência de juros e da correção monetária dos valores durante o prazo adicional.
Outro impasse encontrado para reestruturação é o entendimento dos Tribunais de que o artigo 83 da Lei nº 11.101/2005, que trata sobre a limitação da inclusão do crédito trabalhista a 150 salários mínimos na classe I e, o que sobejar, na classe de credores quirografários, não se aplica à Recuperação Judicial e tão somente à falência em específico.
Esse entendimento faz com que o valor destinado ao pagamento dos credores seja consumido, muitas vezes, com o pagamento dos créditos trabalhistas, quando estes são de elevada monta, reduzindo as possibilidades de melhor distribuição do capital da recuperanda a maior quantidade de credores das classes de garantia real, quirografário e microempresa e empresas de pequeno porte possíveis.
O objetivo da Lei de Recuperação Judicial, quando traz sobre a preferência no recebimento pelo credor trabalhista, o faz para garantir uma quantia suficiente e razoável para a subsistência ao trabalhador ou a ele equiparado, ou seja, um mínimo para o seu sustento, o que se entenderia pela suficiência do montante previsto no artigo 83, I.
Fundamentadas na tese de melhor distribuição dos pagamentos aos credores e da omissão da lei com relação à classificação dos créditos na Recuperação Judicial, muitas recuperandas requerem aos juízos competentes a aplicação do mencionado dispositivo legal ao procedimento recuperacional.
Após os Tribunais Estaduais muito decidirem de forma contrária ao pleito do devedor, o Superior Tribunal de Justiça admitiu que, quando assim dispuser o plano e este for aprovado na classe de credores trabalhistas, a divisão do crédito entre as classes I e III será válida.
Com a alteração parcial do entendimento pelo Superior Tribunal de Justiça, o Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo tratou do tema no Enunciado XIII, indicando a possibilidade de aplicação da condição prevista no artigo 83, I da lei 11.101/2005 também ao processo de Recuperação Judicial, retirando a exclusividade do processo de falência.
Essa matéria, recentemente, veio novamente ao centro das discussões com a inclusão do Recurso Especial nº 1812143/MT para julgamento. Nesse recurso se discute a possibilidade de limitação da inclusão do crédito equiparado ao trabalhista, honorários advocatícios de grande banca de advogados, na classe I, onde o plano aprovado pelos credores fez constar a subclasse de credores trabalhistas com créditos superiores a 150 salários mínimos.
A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, consolidando os entendimentos das Turmas de Direito Privado, decidiu que não há aplicação automática do artigo 83, I, da Lei nº 11.101/2005 à Recuperação Judicial, pois a forma de pagamento dos créditos neste procedimento é estabelecida consensualmente pelos credores e pela recuperanda no plano de Recuperação Judicial, validando a cláusula que assim dispõe.
Importante que, apesar das constantes evoluções, os Tribunais e doutrinas devem se atentar à continuidade da busca do equilíbrio entre os direitos e interesses dos credores trabalhistas, ainda mais os de vultosas quantias, para que o processo de Recuperação Judicial possa ser mais efetivo e deixe de atender somente aos interesses de poucos, objetivando a eficiência e atendimento da coletividade e cumprimento do princípio da preservação da empresa.