Por Carlos Henrique Terranova e Fernanda Santiago Pereira Liso
Há quem acredite que a escravidão, um dos capítulos mais tristes da história da humanidade, tenha ficado no passado. No entanto, o mundo continua testemunhando essa prática nos mais diversos lugares e contextos. A escravidão moderna, diferentemente daquela vivenciada por nossos antepassados, não é exposta. Via de regra, ela fica circunscrita a determinadas áreas de produção e os trabalhadores mantidos distantes da linha de visão.
Historicamente, o meio rural sempre concentrou o maior número de casos de escravidão e hoje não é diferente. A produção no campo traz questões muito delicadas, pois muitas vezes envolvem pequenos produtores de terras que atuam na atividade agrícola com suas famílias, ou mesmo indivíduos que não possuem bens e se dispõem a trabalhar na lavoura em troca de um teto e um prato de comida.
Nesse cenário, o trabalho análogo à escravidão pode ser verificado quando há coação por parte do empregador para aquisição pelo empregado de suas mercadorias, muitas vezes a preços abusivos justamente com o propósito de comprometer o salário e, assim, gerar seu endividamento e o trabalho de servidão por dívida (chamado truck system); quando há o fornecimento de alimento e moradia em troca da mão-de-obra; ou havendo submissão por meio da força, como pode ocorrer com imigrantes ilegais ou retirantes.
No entanto, o trabalho forçado não é exclusividade do meio rural. Em investidas promovidas pelas autoridades trabalhistas desde 2017, foram identificados casos de escravidão doméstica, bem como em galpões, salas e até residências, onde os trabalhadores se dedicavam à confecção de produtos diversos e em setores variados, como da construção civil e fabril.
Muitos trabalhadores, que vivem em condições de pobreza extrema e exploração desde a infância, são atraídos por esses empregadores com a promessa de melhores condições de vida, possibilidade de ajudar suas famílias e acabam em uma situação em que sua liberdade é cerceada e as condições de trabalho são muitas vezes piores do que aquelas em que se encontravam anteriormente.
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre 1995 e 2020, mais de 55 mil pessoas foram libertadas de condições de trabalho análogas à escravidão no Brasil. A informação considera dados coletados pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho, vinculada à Secretaria Especial de Previdência e Trabalho (SEPRT) do Ministério do Trabalho.
Especificamente em relação ao ano de 2020, as 266 fiscalizações promovidas pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho resultaram em 942 operações de resgate de trabalhadores submetidos à escravidão. O Estado de Minas Gerais foi o que mais promoveu ações de fiscalização e também onde houve o maior número de trabalhadores encontrados em situações semelhantes à de escravo.
Aqui não vamos adentrar ao mérito das autuações em si e a caracterização como situação análoga à escravidão de situações de mera violação à normas trabalhistas, cuja penalidade já se encontra prevista em lei. Sabemos que muitas vezes, há um elastecimento por parte dos órgãos fiscalizadores na correta aplicação do instituto, o que por vezes acaba desvirtuando o trabalho de efetiva erradicação do trabalho forçado.
De todo modo, o resultado dessas fiscalizações podem levar a lavraturas de autos de infração com determinação de pagamento de multa, instauração de procedimento de administrativo perante o Ministério Público do Trabalho para assinatura de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e, ainda, ajuizamento de Ação Civil Pública com pedidos de pagamento de salários ou verbas rescisórias — nos caos em que os caso os empregados tenham recebido a remuneração devida ao longo do período de prestação de serviço — e danos morais, individuais e coletivos, sem prejuízo de pedidos relacionados a obrigações de fazer e não fazer, danos morais coletivos em valores expressivos e ações individuais.
O Ministério do Trabalho e Previdência (MTP) pode ainda incluir, após decisão administrativa final relativa ao auto de infração em que tenha havido a identificação de trabalho escravo, o nome do infrator no cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo. Uma vez na chamada Lista Suja, onde poderá permanecer’ por um período de dois anos, a Inspeção do Trabalho realizará monitoramento a fim de verificar a regularidade das condições de trabalho. Caso identificada reincidência no curso ‘ desse período, o tempo passa a ser de quatro anos.
Embora a inclusão do empregador na Lista Suja não signifique que o empregador foi criminalmente considerado culpado, as consequências podem se materializar em várias esferas. A primeira delas é a reputacional. Como a lista é pública, dependendo do nível de investigação que for realizado sobre o assunto, a relação entre a empresa e seus investidores (e financiadores), clientes e outras sociedades em geral pode ficar comprometida, ocasionando danos à sua imagem, ainda mais se os fatos forem noticiados em jornais ou em outros veículos de comunicação. Depois vêm as restrições na captação de dinheiro junto ao BNDES e outros bancos privados ou públicos. (iii) Na sequência virão as restrições nas contratações com o governo ou de empresas detidas ou controladas por ele, além de ampliar a possibilidade de os órgãos públicos solicitarem maiores informações sobre o assunto e voltarem a investigar a organização. Por fim, existe o risco de confisco de terras e a proibição de obtenção de créditos rurais e de outra natureza.
Nesse sentido, as empresas não podem mais ignorar a forma como os produtores, cooperativas e outras companhias que atuam como seus fornecedores lidam com seus empregados e cumprem corretamente a legislação trabalhista. É imprescindível que as organizações estejam atentas às suas cadeias produtivas, desenvolvendo mecanismos para acompanhar de perto os processos de produção e transporte dos materiais que fazem parte de seu produto final, sob pena de ter seu nome vinculado a terceiros acusados de violação a direitos humanos. Somente com o comprometimento de todos é que conseguiremos erradicar o trabalho forçado e finalmente afirmar que escravidão é coisa do passado.
Carlos Henrique Terranova e Fernanda Santiago Pereira Liso são associados da área trabalhista do Trench Rossi Watanabe